aTalvez o título desta história já esteja fora de moda. Talvez já seja provável uma pessoa, dita viajante, perder-se de amores por um território considerado improvável. Talvez até a graça seja mesmo essa, o provável é ser improvável, sabemos que vamos gostar, mas não sabemos o que vamos encontrar. Quase como blind date, em que tudo aponta para o sucesso, pelas características do local e do viajante, ligando todas a luzes que indicam o match perfeito. Mas, mesmo isso, tudo isto é improvável. Existe muito de desconhecido, existem muitas incertezas. Confuso? Talvez sim. Talvez seja este imbróglio de sentimentos que ainda me invade, depois uma deliciosa viagem improvável por Mértola. Sou uma pessoa muito qualificativa. Nos sentimentos também. Mértola, na lista dos destinos favoritos, está, sem grandes dúvidas, no topo dessa lista.

Talvez existam destinos mais fáceis. Mais fáceis de gerar expectativa, mais fáceis de construir postais à volta das suas paisagens. Talvez isso não seja o mais importante. Principalmente quando surge a questão: “qual maior retorno de uma viagem?”. Adoro que me façam esta pergunta, para poder responder, com muita clareza: “são as memórias!”. Passo a explicar. Existe sem investimento numa viagem, seja em tempo, em dinheiro ou em sonhos. Indireta ou diretamente, procuramos sempre respostas para o investimento, respostas que são sinónimo de retorno. Para mim, recordar uma experiência, uma conversa, um momento, um cheiro, um paladar, sobre um lugar que não é o meu lugar de origem, é o melhor retorno que posso ter ao investimento realizado por mim numa viagem. Talvez seja nesta medição de retorno, em formato de memórias, que chegue rapidamente à conclusão que Mértola é uma das minhas viagens e destinos favoritos. Com facilidade, independentemente do local onde me encontre no momento do pensamento, consigo recordar conversas com pessoas extraordinárias, como a Dona Luciana, o Manuel Passinhas, o Bruno, a Sara, entre tantos outros, consigo sentir o sabor do queijo, do chouriço ou das migas, consigo até sentir o sabor do vento na cara, quase como se estivesse no ponto mais alto da Alcaria Ruiva. Isto são memórias de viagem. Para mim, sem dúvida, o melhor retorno. E de Mértola, , em viagem, tenho um baú cheio delas.

Viagem por Mértola, começa muito antes de Mértola. Começa muito antes da vila. A vila é o coração, mas não é tudo. Existe muito mais. Desde que descobri que Mértola é um dos meus destinos favoritos, a minha viagem por ali, passou a começar, sempre, no Café Cravinho, na aldeia de Vale de Açor, para uma sandes presunto e dois dedos de conversa. Este café também é um “destino improvável”. Aparentemente é apenas um café, mas na verdade é uma fábrica de sonhos, sob forma de salsicharia tradicional, onde cada produto que de lá sai, com mais ou menos sabor, com mais ou menos cor, é feito com amor. Sim, parece demasiado romântico vindo de alguém que vive neste mundo louco. Mas a verdade é que ainda existem lugares assim. Como Vale de Açor, como a Salsicharia Cravinho, como Mértola. É tão bom. Comer qualquer enchido da família Cravinho sabe a casa, mesmo que a nossa casa não tenha sabor. Sabe a conforto. Acredito que só se consegue esse sabor com amor. Depois de Vale de Açor a viagem continua, por muitos dos lugares dos quais ouvi falar no Café Cravinho. A Ermida da Nossa Senhora de Aracelis é um bons exemplos. Um monte com nome de fada, como eu lhe chamo. Um lugar majestoso, a roçar o mágico. Os queijos tradicionais de Corte Gafo, que também sabem a casa, a paisagem ancestral do Vale do Guadiana, os cheiros dos campos transportados pelo vento que sopra com uma suavidade invulgar, o horizonte longínquo a contrastar com paisagem de serra (contraste que faz de Mértola, só por si, um lugar único), lugares como Monte dos Sapos, Corvos, Moreanes ou Corte da Velha, a leve frescura do rio com histórias mais longas que o seu leito, todos pâezinhos, azeitonas e chouricinhos, de pequenos cafés, mercearias e tabernas, decorados com calendários do Benfica e onde todos se conhecem, a complexidade e juventude do Pomarão, aldeia/porto com meio pé em Espanha, e claro, a Mina, sempre a Minha, aldeia de Mina de São Domingos, com uma paisagem lunar e uma história tão grande que funciona como um íman permanente para quem por lá passa. Tudo isto é Mértola.

É claro que Mértola também é a sua Vila Velha, a sua Antiga Mesquita, o seu festival Islâmico e o seu Castelo. É deslumbrante e apaixonante o lado mais provável de Mértola. Esta soma de todas das partes, entre o provável e o improvável, fez da minha viagem por Mértola algo que mistura o marcante e o enigmático, sempre com novo lugar para descobrir, sempre com uma nova história para viver.

Em jeito de viagem-diário, recordo algumas das minhas mais marcantes experiências por Mértola:

Mina de São Domingos

“A minha história com Mina de São Domingos, não começou com esta minha recente visita, com o objetivo de escrever esta história. A minha história com este lugar, começou em 2013. Precisamente na minha épica viagem de bicicleta, entre Abrantes e Vila Real de Santo António. A viagem inaugural, a viagem mais importante de todas, a viagem que deu origem ao que hoje é o, com muito orgulho, internacionalmente premiado O Meu Escritório é lá Fora!. Portanto, Mina de São Domingos, quase sem querer, também foi uma das grandes culpadas disto tudo. Quis o destino, que no Verão de 2013, passasse e parasse na Mina. Digo, quis o destino, porque viajava (quase) sem destino. Viajava sem mapa e no início de cada dia, não fazia ideia por onde iria passar. Recordo esse dia e a paragem na Mina, como se fosse hoje. Recordo-me que almocei em Serpa, já um pouco fora de horas, foi mais um lanche almoçarado. Era início de Agosto, portanto, facilmente conseguem imaginar o calor que se fazia sentir. Nessa paragem para almoço, entre conversas com locais, decidi que iria ficar em Mértola a dormir. Lá indicaram o melhor caminho para lá chegar. Nesse caminho, estava incluída uma passagem por Mina de São Domingos. Nunca lá tinha ido antes. Não conhecia, de todo, a sua história. A meio da tarde, parti de Serpa. Estavam mais de 40º. Recordo que foi um Verão particularmente quente. Já vinha a pedalar desde Moura, nesse dia, e já tinha muitos quilómetros nas pernas dos dias anteriores. Todas as sombras, eram bons lugares para parar e recuperar algum folgo. Não me recordo de quantas vezes parei, durante os mais de 30km que ligam Serpa a Mina de São Domingos, mas sei que foram muitas. Sentia-me já meio a desfalecer, até que, antes da Mina, encontrei quase no meio do nada, quase como uma miragem no deserto, uma bomba de gasolina, que também tinha um pequeno café. Como é óbvio, parei. Não fazia ideia a que distância estava da Mina, já só pensava em chegar (sem uma queimadura grave) a Mértola. Lembro-me que encostei-me a bicicleta a uma parede do café. Estava uma senhora e um senhor, já com muitos anos de vida, sentados numa esplanada improvisada, à sombra, naquele que parecia o lugar mais fresco do local . A senhora trabalhava no café da bomba, o senhor estava simplesmente a deixar o tempo passar. Pedi um calippo de morango e um ice tea de pêssego. Pareceram-me as duas coisas mais refrescantes que existiam por ali. Sentei-me ao lado do senhor. Nem 1 segundo passou e o senhor fez-me a pergunta óbvia: ” o que anda o menino a fazer de bicicleta com tanto calor?”. Lá lhe disse que estava a viajar, de onde vinha e para onde ia. Ao que ele rapidamente retorquiu, com um “eu quando era novo também fazia viagens de bicicleta, fui até Lisboa de bicicleta, para tirar (ou renovar!?) o bilhete de identidade. Nem sei quantos dias demorei”. Bem, em 5 segundos de flashback, imaginei como teria sido a viagem desde senhor, talvez há 60 ou 70 anos atrás (o senhor deveria ter mais de 90). E com esta pequena troca de palavras, fiz a minha primeira amizade em Mina de São Domingos. Resultado, aquilo que seria uma pequena paragem para me refrescar e respirar, durou quase 2 horas, entre conversas e histórias sobre a Mina. Ouvi pela primeira vez os nomes de Mason e Barry, ouvi histórias das dificuldades e dureza do trabalho de mineiro, ouvi pela primeira vez a história, com orgulho, de ter sido a primeira aldeia a ter luz eléctrica, ouvi histórias de futebol. Enfim, ouvi coisas demasiado encantadoras, que me fizeram nunca esquecer este pequeno e grandioso momento. O Sol já estava baixo quando saí daquela inóspita bomba, com vontade de ficar para ouvir mais umas 100 histórias. Passados, talvez, 15 minutos a pedalar cheguei a aldeia. Com a paragem inesperadamente longa, e com o dia a caminhar para o fim, não parei na aldeia, apenas a atravessei. É engraçado como senti logo algo diferente. Muito por culpa do senhor das histórias, senti que já conhecia a Mina e facilmente, sem deixar de pedalar, fiz uma viagem no tempo e imaginei como seria aquele lugar há 100 anos. A diferença das experiências, está mesmo nas pessoas. Recordo que cheguei já noite a Mértola. Nunca mais esqueci a Mina e aquela conversa. Diria até, que foi um momento importante para aquilo que se tornou a minha vida. Senti, ou confirmei, que existiam muitas histórias por contar, muitos lugares maravilhosos (e escondidos) por aí, muitas conversas improváveis (e deliciosas) para se ter. Ficou sempre a promessa de uma visita. Felizmente, quase 5 anos mais tarde, aconteceu.”

Vila Velha

“Fiquei tão feliz quando marquei a minha viagem a Mértola. No fundo sabia que a minha afinidade, resultava de um laço profundo e importante, mas que em termos de profundidade de conhecimento e vivência, era um laço quase nulo. Cheguei à Vila Velha, num inicio de tarde de final de Inverno, para ficar de armas (máquina fotográfica, papel e caneta) e bagagens (isso vocês já sabem o que é). Estabeleci como quartel general a Casa do Castelo. Como o nome indica, fica colada ao Castelo. Pousei as malas e saquei das armas. Comecei a explorar a Vila Velha. Muitas vezes temo e fujo das frases cliché. Assumo-me como alguém que escreve de coração e sem problemas em adjectivar o que sente, mas por vezes temo que possa cair na poça do exagero. Mas, neste caso, não tenho por onde fugir. Tenho de bater de frente com os clichés e ser o eterno romântico sonhador, de sempre. Não digo que, mal comecei a andar pelas ruas empedradas da Vila Velha, sofri de imediato desse “mal” chamado de “amor à primeira vista”. Ok, era primeira vez que caminhava por ali. Ok, estava completamente encantado com o estava viver. Mas não me sentia em algo novo. Sentia-me num lugar onde, apesar de ser a primeira vez que ali estava, que me era próximo. Uma afinidade difícil de explicar. Acredito que grande parte da culpa, seja do que descrevi em cima. Mas vivia curioso com o que estava a sentir. Quase como me sentir imediatamente em casa, num lugar estranho. Talvez pelo frio e pela chuva, e pela hora do dia (dia de semana e hora de trabalho), as ruas da vila estavam desertas. Caminhava sozinho, muitas vezes a ouvir vozes a sair dentro das casas, muitas vezes eram vozes da rádio que ecoavam por uma janela aberta. Coisas de pequena aldeia e lugar genuíno. Quase sempre vou em busca de contacto humano, mas estava a sentir-me bem na pele de ser invisível a assistir a um dia normal da vila, sem me intrometer. Meninos a chegar da escola, senhoras a estender à pressa a roupa na rua, aproveitando momentâneos raios de sol ou assistir a conversas ligeiras. Estava na minha missão de observação/imaginação. Imaginava nomes e vidas, numa espécie de “quem é quem” baseado em posturas e acções. Gosto muito deste jogo. Mas com o desenrolar da minha caminhada, fica difícil concentrar-me no banal. Esta Vila Velha ou centro histórico de Mértola também é muitas vezes chamada de Vila Museu. Não por ter uma infinidade de museus, para por, toda ela, na sua plenitude, ser uma espécie de museu disfarçado de vila (ou vice-versa). Não um museu carregado de quadros interactivos, mas um espaço real, carregado de conteúdo interessante, que não preciso muito para perceber a sua dimensão história. Esta sobranceira vila alentejana, no profundo Baixo-Alentejo, no passado sofreu influências de diferentes povos, como Iberos, Fenícios, Gregos, Cartaginenses ou Romanos. Foi Islâmica e Cristã. Toda esta multiculturalidade, não só se conta, sente-se e vê-se. Começando pela sua Igreja Matriz, de culto cristão, mas que no passado foi uma Mesquita. E aquilo que poderia ser “apenas” uma bonita história, de no mesmo local terem sido edificados objectos de diferentes cultos, aqui vê-se. A actual Igreja Matriz, mesmo com muitas intervenções sofridas ao longo dos anos, não consegue esconder o ser lado exótico, com destaque para o restaurado mirhab (que indica a direcção da cidade de Meca) que ainda ali existe. Facto único, que faz deste lugar e edifício, algo de extraordinariamente belo e interessante. Conseguem imaginar o conjunto de histórias que passaram pela minha cabeça ao estar diante de um edifício, que é uma igreja, mas que também é conhecido como Antiga Mesquita? Resposta fácil. Muitas e boas histórias. Talvez a história mais fácil de imaginar, seja a de Ibn Quasi (figura histórica ligada à vila, que tem uma estátua, em cima de seu cavalo, em frente ao Castelo), muçulmano, e D.Afonso Henriques, cristão. Segundo consta, eram amigos. Isto numa época de difícil convivência entre seres de diferentes religiões. Diz-se que dessa amizade, até foi construída uma aliança ao jeito de irmandade. Deste quase “acaso” histórico, onde a improbabilidade reina, é bastante fácil, para mim, estabelecer um paralelo, entre esta relação improvável e a Igreja Matriz/Antiga Mesquita. Muito fácil, imaginar os dois, nos seus cavalos a estabelecer leis e estratégias em frente a este lugar. Se calhar até aconteceu. Seguindo a caminhada, toda a Vila Velha segue este registo. Da riqueza cultural, feita de relações improváveis. Com por exemplo e voltando a Ibn Quasi, o muçulmano amigo de D.Afonso Henriques, que tem uma estátua em frente a um castelo de traço cristão (uma estátua muçulmana, em frente a um castelo cristão, percebem?) ou o Bairro Islâmico da Alcáçova, “plantado” ao lado de um cemitério cristão.”

Os Segredos

“Para desvendar o, talvez, maior dos segredos faço uma viagem no tempo de 5 mil anos. Nessa altura, o território de Mértola foi ocupado, entre outros povos, por Fenícios. E menciono os Fenícios, e não outros, por um pormenor delicioso que ainda marca o território na atualidade, não com o mesmo propósito, é claro. Mértola era o último porto e entreposto comercial do Mediterrâneo. Conseguem perceber a importância deste lugar, só por este “simples” facto? Na altura os Fenícios eram uma espécie de reis das rotas comerciais do Mediterrâneo e Mértola, como ponto estratégico de elevada importância, basta ver logo ali ao lado estava o gigante Atlântico e outras rotas comerciais importantes, tornava-se demasiado fácil de perceber que Mértola era muito apetecível. Por este mesmo motivo, relacionado também com outros importantes recursos, como as minas e a própria geografia do local com qualificações para bom posto de defesa, Mértola foi sendo conquistada sucessivamente ao longo da sua história. Porto mais Ocidental do Mediterrâneo, assumiu diferentes culturas, povos e crenças ao longo da sua vida. Assumindo por isso uma multiculturalidade, que não se pode só sentir, mas que se pode ver e tocar nas várias camadas que as fundações da vila escondem. Depois dos Fenícios, Gregos e Cartaginenses, chegaram os Romanos, mantendo Mértola ou Myrtilis Iulia (nome romano atribuído a Mértola), a sua importância como importante porto comercial.  Mais tarde foi ocupada pelos povos do Norte de África, que transformaram Mértola num território Islâmico, assim permanecendo durante cinco séculos. E talvez seja este um dos períodos mais fascinantes da história de Mértola, a época em que se chamava Martulah. O Bairro da Alcáçova, mesmo junto ao castelo, é o grande espelho da ocupação Islâmica, podendo também ser imaginada em forma de Medina, visualizando-a como cidade intra-muros. Mas um dos grandes segredos, não daqueles ligados a histórias de piratas e rebeldes, mas daqueles palpáveis é a Mesquita. Como cidade Islâmica, é claro que teria que existir uma Mesquita. Como aconteceu em muitos outros lugares, com a reconquista Cristã, o mais provável seria a destruição completa da Mesquita (ou pelo menos, a destruição do seu traço) e a construção de uma Igreja. No caso Mértola a Mesquita deu lugar a uma Igreja, que foi sendo reconstruída ao longo de diferente épocas, talvez por isso, a Antiga Mesquita (ou Igreja Matriz) como ainda hoje é designada nunca perdeu aquele traço oriental e exótico tão destinto. Talvez por isso, é uma delícia para mim visitar este monumento, como uma constante viagem no tempo e com uma fácil transição entre diferentes épocas e culturas. Não sei se por culpa da Antiga Mesquita ou se por algum traço genético inalterável, é inequívoca a ligação de Mértola ao oriente, que o tempo não apagou, mas moldou em algo especial. Ligação que se mantém viva com eventos como Festival Islâmico ou com múltiplas designações islâmicas que podem ser vistas pelo território ou pelo facto completamente delicioso de estar uma estátua  de um senhor de nome Abu-l-Qasim Ahmad ibn al-Husayn ibn Qasi (dá para perceber que não é um nome Cristão, não dá?) mesmo em frente a um Castelo Cristão. Acho que este último pormenor é um bom espelho das vidas diferentes e marcantes que este lugar teve. Só para terminar o desenlace da narrativa chamada “desvendar um segredo” (neste caso, o primeiro), conto-vos uma pequena história real, que se passou comigo, ainda antes deste tempo em que olho para Mértola com olhos de ver. Há uns anos estava eu numa pequena e remota aldeia, bem perto da remota cidade Errachidia, em pleno deserto do Sahara, nos confins do interior de Marrocos. Estava em amena confraternização com uma espécie de tribo local, claro, com o borrego e chá de menta na mesa, e numa mistura de inglês com espanhol lá me fazem a pergunta do costume. “De onde és?” (presumo que seja fácil de perceber que não sou marroquino). Com o orgulho típico de quem gosta muito da sua terra, lá respondi: “sou de Portugal!”. Estava num aglomerado de cerca de 10 homens, assumo que todos muçulmanos, eis que, quase sem me deixar acabar o dizer o “Portugal”, salta lá do fundo para o meio de nós, quase como um salto típico de circo e cheio de entusiasmo, um pequeno marroquino com umas calças iguais às do Aladino, a exclamar “Portugal!?….Mértola a melhor terra do mundo”. Fiquei feliz, como é óbvio, com tamanho entusiasmo de um estrangeiro exótico sobre o meu país. Mas não consegui esconder o espanto de “porquê Mértola?”. Normalmente a resposta é Cristiano Ronaldo, Benfica ou Lisboa. À minha interrogação, ele lá respondeu: “adoro ir lá vender coisas”. Algures no século XXI ainda se consegue confirmar a teoria do último porto comercial do Mediterrâneo.”

Vale do Guadiana

“Continuando ainda pelo rio, um pouco mais a Sul, descubro o Moinho dos Canais. Aqui a paisagem não é dramática e o rio já não se esforça para se mover. O vale é enorme e a paisagem é graciosa, não fosse aquele calor seco típico do Alentejo, poderia pensar que estaria num outro qualquer lugar, já que esta paisagem quase que torce todos os conceitos típicos da paisagem alentejana, sempre associada à planície. Os moinhos, hoje desmantelados, são também uma espécie de homenagem da multiculturalidade desta região. Num vale rochoso e íngreme, feito de grandes declives, encobre (e encobria) grande campos de cereais. Difícil é imaginar os agricultores, certamente com os seus burros, a descer as gigantes encostas do vale para chegarem aos moinhos. Seria certamente uma história dentro da história.  Existem mais uns quantos moinhos e azenhas ao longo deste troço do rio. Continuo percorrer as estradas do parque. Não me consigo concentrar entre pequenas conversas ou simplesmente identificar a música que “corre” no rádio do meu carro. Sei que ainda existem mais segredos por aqui. Para além dos segredos que são paisagens arrebatadoras e feitos geológicos com milhares de anos, existem muitos habitantes “famosos” por aqui. Quase como sabermos que eles podem estar atrás de qualquer árvore ou de qualquer arbusto. Sinto que os posso ver a qualquer instante. Não sigo com aquele desejo de possessão, sigo com respeito. Estou num parque natural, não paguei bilhete para um jardim zoológico. O habitante mais famoso talvez seja o lince ibérico. Talvez pelo seu carácter e figura pouco comum, talvez por ser uma espécie (muito) ameaçada e rara, transforma-se numa espécie de unicórnio. Ver um lince, seria uma memória para toda a vida. Mas, apenas senti a sua presença. Não vi qualquer lince, mas senti-me feliz por saber que tive perto e que muitos deles vivem felizes neste maravilhoso espaço. Outro dos habitantes famosos é a águia-real. Essa, nesta viagem, mostrou algumas vezes o ar da sua graça. Ao longe, a dizer que está presente mas mantendo o seu carácter discreto e imponente. Sentia-me dentro do programa da BBC, daqueles que tantas vez vi nas manhãs de fim de semana. Naquela fase da minha vida em gostava de ser como o David Attenborough (acho que aconteceu a muitos, certo?), adoraria ter sabido que existiam lugares como este no país onde nasci. Talvez não mudasse nada, talvez apenas o orgulho chegasse mais cedo. Dentro do filme que estava a viver, entre encontros imaginários com o unicórnio lince ibérico,  e de pescoço erguido a seguir as águias ou  de ouvidos atentos a tentar descobrir que passarinho especial canta assim, eis que surge um gamo (parecido com veado). Ao melhor estilo do bambi, que emociona qualquer um, parou, olhou para mim e pousou para a foto. Só faltou dizer-me adeus. Tão simples e tão belo. Mais uma vez a prova que  muitas vezes se encontra a perfeição na simplicidade. Fiquei 15 minutos de sorriso constante, depois deste encontro.”

Contrabando

“Recordo uma passagem que me fez viajar como se estivesse dentro de um filme:

“Chamo-me Fernando Vaz, sou natural de Moreanes (aldeia perto de Santana de Cambas), andei no contrabando durante dois anos. Em 1963 e 1964. Vida dura e pouco compensatória. Mas lucrativa para o patrão, o “Marrocos” de Bens (monte em Mértola). O processo funcionava assim:

De duas em duas semanas, junta-se um pequeno grupo ao final da tarde e partíamos de Bens. Chegados ao local, arranjávamos a carga. Café em grão, cada saca de serapilheira com 25kg. Recordo que o Talisca da Mina (de São Domingos) levava 30kg porque era forte e quem levava mais, ganhava mais. Assim que escurecia, partíamos em direção a Gibalião (Gibraléon, povoção espanhola a 70km de Santana de Cambas). Quem ia à frente era o António Pinheiro, que conhecia os trilhos de olhos fechados. Só caminhávamos à noite, sempre em fila indiana, com 5/6 metros de distância entre os elementos do grupo. Não sei porquê, sempre tive medo de ir em último.

Quando chegávamos ao destino, bebíamos um pouco de aguardente espanhola, aquele que misturada com água ficava branca. À nossa espera estava quase sempre o patrão “Marrocos” que ia lá ter de transporte. Recebíamos em pesetas e o regresso era feito a caminhar de dia e de noite. Demorávamos cerca de 24 horas a chegar. Íamos leves e cheios de vontade de voltar a casa. Ao chegar a Bens, recebíamos mais 200 escudos (hoje equivale, sensivelmente, a 50€).

Algumas vezes, no regresso, fazíamos outro trabalho e trazíamos mercadoria para Portugal. Muitas vezes eram animais, machos e mulas, para a feira de São Mateus.

O perigo de fazer as rotas de contrabando aumentava com a época das chuvas. As ribeiras enchiam e tínhamos de passar pelo menos por duas. Sobretudo a do Malagão, era um problema. Passávamos a ribeira à corda. Normalmente, o António Pinheiro, que era o mais experiente, lançava-se à corrente e com uma parte da corda agarrada com os dentes, passava a ribeira e atava a corda na outra margem. Despíamos a roupa para atravessar a ribeira.

Muitas vezes caminhávamos sem mantimentos, apenas comíamos bolotas. E o Inverno, nos períodos em que não estávamos a caminhar, combatíamos o frio com as pernas dentro da saca de serapilheira e com o casaco enrolado na cabeça, todos enroscados.

Era assim, a vida no contrabando.””

Espero, de coração, que construam a vossa viagem por um destino tão especial como Mértola. Depois contem-me como foi.

 

 

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