silves e a herança árabe-islâmica

Silves, é a mais antiga capital do Algarve e uma das mais antigas cidades portuguesas. A sua localização é privilegiada pela confluência de dois cursos de água, o Rio Arade e a Ribeira de Odelouca, o que terá precipitado a fixação humana desde muito cedo. No período árabe, este era um lugar com uma vida cultural intensa, fruto da sua população civilizada e requintada composta por um núcleo da nobreza islâmica. Uma cidade próspera que durante quase cinco séculos pertenceu ao domínio árabe e que ficou celebremente conhecida como a “Bagdade do Ocidente”. Silves era à época a cidade muçulmana denominada de “Chelb”, a mais opulenta cidade do ocidente da Península Ibérica, e segundo certos autores, chegava mesmo a ultrapassar Lisboa em dimensão e relevância, com uma indústria naval poderosa e um comércio florescente. Dentro do território do “Chenchir,” antigo nome dado ao Algarve, Silves era o lugar de destaque, o ponto chave e o seu maior tesouro.

Esta cidade romana fica sob o domínio islâmico em 713, momento em que é conquistada por Abd-a-Aziz e colonizada por habitantes com origem na Península Arábica, maioritariamente vindos do Iêmen. Silves era então um lugar de imponentes palácios, grandes bazares e mercados, jardins e pomares e de terrenos férteis. Pertinente referir a sua forte componente defensiva, estando toda ela rodeada por uma muralha, como forma de proteção dos inimigos e, consequência da grande cobiça de que sofria. Entre os séculos IX e X, Silves é atacada pelos Normandos. Em 966 o Rio Arade serve de palco a uma batalha entre os barcos normandos e a frota de Sevilha da qual os muçulmanos saem vencedores. O Rio Arade era a principal via de acesso à cidade, sendo que durante a época islâmica o rio era ainda navegável até as muralhas do castelo, o que fazia dele um ponto importante não só a nível comercial e bélico mas também enquanto lugar de lazer e encontro. Era ele que fazia de Silves uma cidade portuária e que funcionava enquanto canal direto com o Atlântico.

Durante o século XI, Silves foi capital de uma Taifa, ou seja, de um principado muçulmano independente, também designado de emirato. Entre 1041 e 1247, a cidade de Silves conheceu diferentes conquistas e reconquistas, passando a sua liderança por diversos representantes. Durante o período almorávida, Silves perde alguma da sua importância pela sua anexação à Taifa de Tavira mas no segundo período da época das taifas volta a ser uma das grandes cidades do Gharb al- Andalus com Ibn Qasi. Ibn Qasi enquanto crente no conceito de unidade divina, autodenominou-se de mahdi, ou seja, eleito por Deus. No contexto histórico, Ibn Qasi assumiu um papel preponderante na luta contra os almorávidas. Ibn Qasi ficaria conhecido como uma personagem incontornável da história de Silves, não só pela seu papel político como enquanto responsável pela criação da doutrina islâmica do muridismo, uma doutrina centrada no misticismo e na contemplação.

As grandes perturbações políticas e religiosas que assombraram o mundo islâmico nos séculos de XI e XII, marcaram a cidade de Silves, levando a constantes mudanças dos seus senhores, longos cercos e sangrentas batalhas. Como consequência destas frequentes mudanças, foi-se criando um clima de alguma instabilidade e abriu-se espaço a uma fragilidade que viria a ser aproveitada por D. Sancho I.

 

Foi por volta de 1167 que os cristãos começam a assolar esta região, e em 1189, D. Sancho I com o apoio da terceira cruzada decide mesmo avançar sobre Silves. Para garantir o apoio dos Cruzados nórdicos em tomar a cidade de Silves, D. Sancho I firma um acordo que lhes permite que possam saquear tudo quanto queiram, desde que deixem a cidade para si. Este momento fica marcado pela sua mortandade e pelo início do declínio no esplendor deste lugar. A cidade foi violentamente pilhada e destruída e o resultado do cerco, revelar-se-ia devastador. Contudo, em 1191 Silves volta a ser muçulmana e é apenas em 1247 com D. Paio Peres Correia que se torna em definitivo cristã, durante o reinado de D. Afonso III.

Depois dessa conquista tomada de forma brutal pelos cristãos, Silves não voltaria mais a ser o que era. As crónicas dessa época relatam a miséria, a fome e o rasto devastador da morte. A crença de que pela construção de uma igreja a cidade poderia simplesmente renascer, revelou-se como uma assunção tremendamente errada e ao mesmo tempo que o rio Arade perdia a sua força e ia secando, também a cidade de Silves perdia o seu antigo fulgor. Com o assoreamento do rio, viria a perda de comércio com o Norte de África e Silves perdia consequentemente o até então lucrativo tráfego marítimo. Nos séculos seguintes a cidade viria a conhecer alguma expansão marítima sendo que em 1755 com o sismo, viria a sofrer novamente um forte abalo. No século XIX o desenvolvimento industrial, com destaque para a indústria corticeira e para a transformação de frutos secos, permitiu que começasse a recuperar a sua importância e voltasse a viver um período de ascensão e crescimento até à atualidade.

A cidade de Silves é nos dias de hoje ainda um lugar que está fortemente marcado pela grandeza do seu passado histórico. O património que remonta ao período islâmico, revela de forma bastante clara, a opulência e o esplendor que a cidade viveu neste período de domínio árabe. A herança islâmica está ligada a uma certa mitificação da própria cidade, na qual se destaca a figura de Ibn Qasi e que se torna facilmente identificável não só através da sua arquitetura como da música e da produção literária. Pegando no termo árabe tarab, para o qual não existe uma tradução literal, mas cujo significado envolve essencialmente uma sensação de êxtase e de entrega, Silves revela através dessa mesma herança, a certeza de ter sido um lugar onde a possibilidade de se viver esse tarab imperava.

O legado islâmico é visível nos dias de hoje através dos artefactos arqueológicos como o castelo, que é um dos maiores exemplos da arquitetura militar islâmica em Portugal e o monumento mais emblemático da cidade, construído em taipa e grés vermelho, mas também das muralhas, a Porta da Almedina, a Cruz de Portugal, o poço-cisterna e a Sé, e de toda a produção artística desse período. Além dessa fulgurante produção literária, existe ainda um sem fim de lendas que sobreviveram em grande parte por via da tradição oral, como por exemplo, a lenda da Moura Encantada, segundo a qual, “na noite de S. João pela meia-noite, na Cisterna Grande do Castelo de Silves, se ouvem lamúrias de uma princesa moura que, num barco de prata com remos de ouro, anseia que um príncipe da sua raça a venha desencantar.” Este património imaterial embora invisível aos olhos configura um espólio, cujo valor é inestimável.

A Feira Medieval de Silves é também um evento incontornável deste lugar, enquanto elemento de valorização e preservação deste mesmo legado e enquanto marca em termos de turismo cultural. A primeira feira realizou-se em 1996 organizada pela Escola Secundária de Silves e em 2005 contou pela primeira vez com a organização da autarquia. Desde então, todos os anos a feira tem crescido, quer no número de grupos envolvidos, quer no número de diferentes ações e eventos que a compõem. Neste sentido, todos os anos, durante o mês de Agosto, Silves faz um regresso ao passado, permitindo a milhares de visitantes que a procuram, usufruir de uma verdadeira experiência de imersão no contexto histórico medieval, através de música, dança, poesia, animação de rua, gastronomia e de um variado número de diferentes espetáculos.

Silves é hoje uma cidade onde o passado e o presente coabitam de forma harmoniosa. Há chegada, o vermelho escuro das imponentes muralhas do castelo, é um dos primeiros encontros com o seu grande património histórico, que nos transporta imediatamente até à antiga Shilb islâmica. Contudo, embora possamos definir um roteiro e estabelecer diversos pontos chave, o simples ato de passear pela cidade é por si só uma viagem, onde cada pequeno detalhe conta uma história e transmite parte do que outrora ali se viveu. É com grande facilidade que nos imaginamos enquanto personagens desse período tão simbólico de uma efervescência cultural sem precedentes. Mesmo no retrato da Silves de hoje, tremendamente diferente dessa que inebriava os poetas árabes, ainda é possível sentir parte da sensualidade desses tempos, quer através da sua arquitetura tão singular, quer através dessa lembrança comum que se percebe ser aqui guardada como quem guarda um tesouro.

 

Al-Mu’tamid escrevia num dos seus poemas: “Saúda, por mim, Abu Bakr // Os queridos lugares de Silves // E diz-me se deles a saudade// É tão grande quanto a minha. Nesta passagem pela história da Shilb Árabe, as palavras de Al-Mu’tamid, o rei poeta, ganham outro sentido e o seu poema, deixa de ser apenas uma série de palavras escritas, e passa a ser também ele, uma espécie de estrutura fortificada. Talvez Silves e a palavra saudade tenham essa raíz comum, a sua unicidade não lhes permite o reflexo de uma tradução.

Julho 2020

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