à moda antiga: Tasca barroso

Na jornada pelo território de Pinhel, permaneceu em mim uma sensação constante de viagem no tempo. Na maioria das vezes ela chegou através da beleza da paisagem, que tantas vezes me parecia virgem, intocada, primitiva. Noutras vezes através do silêncio da estrada, no próprio percorrer de certos caminhos meio desertos. Mas foi também através de certos lugares e da fala de certas pessoas, no incrível espectro temporal de certas histórias, que me empurraram para anos tão longínquos, que dei por mim a viajar por mundos que nunca conheci. Mas até nessas viagens, que me aventurei por destinos desconhecidos, tive sorte. Os interlocutores com quem me foi cruzando, além de grandes contadores de histórias, eram poços de memórias ainda muito vivas, que de forma leve me foram sabendo transportar para o seu passado. Em certos momentos dei por mim tão embrenhado nesses enredos, que parecia que de repente, também eu fazia parte dessas histórias, e que embora na sombra, de forma imperceptível, também eu estava lá, a assistir a tudo, de olhos muito abertos e ouvidos muito atentos. 

Numa espécie de primeiro balanço da viagem, embora ainda prematuro, já que eu gosto de digerir bem tudo o que vejo e de deixar passar algum tempo, entre o ver e o sentir, fui assumindo algumas particularidades deste lugar. Foi curioso perceber o quanto as histórias que fui ouvindo tantas vezes se cruzavam, partilhando as mesmas batalhas, com momentos de viragem que coincidiam no tempo, e na grande maioria, o mesmo espírito de sacrifício, a mesma vontade em arregaçar as mangas e claro, o mesmo amor por esta terra. Na mítica “Tasca do Barroso”, não foi diferente. No primeiro segundo que lá entrei, viajei. Ao contrário de outros encontros, neste não precisei do passaporte das palavras para me transportar, ali tudo foi imediato. O que os meus olhos viam, o cheiro, os contornos, as fotografias, os objetos, o espaço em si, tudo era de outro tempo e foi nesse outro tempo que eu me senti, desde esse tal primeiro segundo, quando os meus pés pisaram aquela casa.

Ao contrário do previsto, é a Dona Generosa quem me recebe, e de sorriso tímido, começa logo por se desculpar porque o marido ainda estava atrasado, preso nas suas rotinas matinais, mas convidou-me para entrar. Numa casa tão antiga como aquela, conseguiam ouvir-se os passos do Sr. Barroso no andar de cima, exatamente por cima da tasca. Lembro-me de que nos primeiros momentos, a voz da Dona Generosa me soava como um ruído de fundo, não lhe conseguia distinguir bem as palavras, mas nada disso se devia ao tom com que ela falava, mas antes à minha absorção de tudo o que os meus olhos observavam. Este meu alheamento fez perfeito sentido, assim que ela me explicou que aquele espaço tinha quase 100 anos, e que pouco ou nada havia sido alterado desde a época em que abriu pela primeira vez. Pedi para me sentar. Em seguida, a Dona Generosa começou-me a contar a sua história.

Generosa é natural de uma antiga freguesia de Pinhel chamada Sorval, mas foi em Pinhel que passou a sua infância e juventude. Como aconteceu com muitas outras pessoas com quem ali me fui cruzando, também Generosa e o seu marido foram viver para Angola. Ele acabou por estar lá mais de vinte anos, e Generosa oito, tendo nascido lá a sua primeira e única filha. O tom torna-se saudosista quando a conversa a leva a regressar de olhos fechados a esses tempos em Angola, admitindo que foi lá muito feliz e que gostou muito dos anos que lá viveu. Estavam numa das licenças em Portugal, onde voltavam de 4 em 4 anos, quando as coisas se começaram a complicar, e acabaram por decidir já não voltar. Estávamos em 1974. O patrão do seu marido, ainda insistiu muito para que voltasse, trabalhava na altura numa fazenda de café, e as colheitas estavam a aproximar-se, mas Generosa acabou por insistir que não fossem, estando consciente de que as coisas nunca mais seriam as mesmas por lá. Esse regresso de certa forma forçado não foi fácil, principalmente para o seu marido, a vida para ele de alguma forma parou, foi um trauma muito grande.

É em 1975, após esse estranho regresso, onde se vêm de volta a Pinhel com uma mão à frente e outra atrás, que aparece a tasca nas suas vidas. Os primeiros donos daquele espaço, tinham sido grandes amigos do seu marido e dos seus falecidos pais, mas depois desses vieram vários outros, até que a tasca chegasse às suas mãos. Foi então que decidiram arrendar a tasca e a casa por cima. Generosa confessa que inicialmente teve medo, associando uma tasca a confusão e a zaragatas, mas felizmente nunca tiveram problemas. Nesses primeiros tempos, era impossível viverem só desse espaço, e o seu marido trabalhava também no campo, onde Generosa também ajudava quando era preciso. Eram de facto outros tempos esses, onde segundo ela, Pinhel estava cheio de gente, o que a certa altura foi também consequência da abertura ali de uma fábrica de calçado. O marido recorda-se de existiram ali mais de 40 tascas e havia clientela para todas, principalmente pelas pessoas das aldeias envolventes, que nesses tempos se viam obrigadas a deslocar-se a Pinhel regularmente, onde estavam todos os serviços. Hoje o cenário é infelizmente bastante diferente, a população está já bastante envelhecida e os mais jovens acabam por já não voltar quando saem para estudar, sabe Carlos já dizia o provérbio, quem vê o seu povo, vê o Mundo todo.

É de forma curiosa que a certa altura da nossa conversa, Generosa explica que o seu marido, a quem todos chamam de José Barroso, não tem Barroso no seu nome, ou seja, o apelido que dá nome aquela casa, nem sequer é seu. O avô de José era sim, Francisco Barroso, e de alguma forma esse nome foi ficando, sendo que José e as suas irmãs viriam a ser para sempre conhecidos como os “Barrosos”. Passados tantos anos, o apelido já é mais seu do que os outros que o compõem. É precisamente nessa altura, que chega finalmente o Sr. Barroso, já a nossa conversa ia longa e a história já chegava praticamente ao fim. Do alto dos seus oitenta e nove anos, a sua figura personificou de forma quase perfeita, a imagem que tinha vindo a desenhar dele na minha imaginação. Ainda deu tempo para me crescer água na boca, enquanto partilhavam os petiscos mais aclamados da tasca, como os peixinhos do rio, as iscas de fígado, ou os carapaus fritos com molho de escabeche, ao mesmo tempo que me passavam em revista as fotografias dos vários grupos para sempre ligados aquele espaço, como os “Cortiços” ou o “Grupo da Moléstia”. 

Quando deixei a “Tasca do Barroso” não consegui deixar de me sentir um privilegiado, por poder ainda conhecer lugares assim, tão ricos em passado, em histórias e tão cheios de uma portugalidade que hoje parece estar a extinguir-se depressa demais. Perdido nos meus pensamentos, dei por mim a desejar ter o poder de dar mais 100 anos de vida aquela casa, para que a memória ali preservada não se pudesse perder, e para que eu ainda pudesse partilhar dela em anos futuros, trazendo ali família e amigos, celebrando a vida, entre copos de vinho e carapaus fritos.

Dezembro 2020

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