Bogalhal: a aldeia e as formigas gigantes

No passado dava pelo nome de Santa Maria de Porto de Vide, a aldeia medieval de Bogalhal Velho, que se situa na freguesia do Bogalhal, no concelho de Pinhel. Enquadrada num cenário que não parece de facto real, a chegada ali, é uma espécie de entrada num portal para tempos remotos. Existe uma aura que envolve aquele espaço e que faz com que sintamos mesmo na pele essa viagem, como se esse processo corresse de forma totalmente independente da nossa vontade. Embora não figure na maioria dos roteiros turísticos, e a pertinência de o conhecer possa não parecer óbvia, no rescaldo da minha visita, não consigo perceber como ainda assim é. Contudo, assumo que o silêncio que ali encontrei, a ausência de outros visitantes como eu, e uma espécie de vazio confortável que em mim se instalou, tornaram a experiência ainda mais intensa. Não sei quanto tempo terei ali ficado, preso por uma infinidade de linhas que a minha imaginação ia ali tecendo, construindo cenários e personagens, diálogos e batalhas, heróis e vilões. Podem ter sido afinal apenas alguns minutos, como várias horas, o sentimento foi de um hiato entre a minha chegada e a partida, como se o relógio ali decidisse parar.

O Bogalhal Velho, é hoje acima de tudo, as ruínas do que outrora foi uma aldeia medieval. É curioso se pensarmos que a ideia de uma ruína, nos desperta automaticamente para algo que se perdeu ou se destruiu, para a decadência de alguém ou neste caso de algum lugar, mas não foi isso que os meus olhos conheceram ali. Acredito que uma das razões que pode explicar esse facto, se deva à presença da água, que do topo daquela colina se consegue vislumbrar. Este lugar encontra-se assim numa posição privilegiada, podendo observar-se dali a Ribeira das Cabras que depois se funde com o Rio Côa. Assumindo o rio enquanto fonte de vida e a forma como a sua presença transforma todos os lugares por onde corre, também ali se sente esse seu poder. Talvez seja uma mistura de fatores, entre eles certamente a existência do rio, mas também a importância que este lugar terá tido no seu passado, a energia enquanto lugar de fé e de procissão, e as lendas que ali nasceram.

Esta narrativa escrita ou oral a que chamamos de lenda, é um património invisível mas acarreta uma das maiores riquezas que se pode guardar sobre um lugar. Nesta antiga aldeia medieval, a lenda que paira sobre este lugar tem tanto de curiosa como de tenebrosa. Segundo consta, durante a Idade Média, as crianças que nasciam naquele lugar eram devoradas por formigas gigantes, e terá sido esse o motivo que fez com que as suas gentes dali tivessem decidido fugir, de forma a conseguirem protegê-las, fixando-se posteriormente na atual aldeia do Bogalhal. Como quase sempre acontece, o fantástico da lenda é tremendamente mais interessante do que realmente terá sido a verdade dos factos. Os motivos lógicos para o abandono deste lugar nada contam sobre formigas em tamanho grande. A teoria diz-nos que este terá sido um ponto estratégico na defesa do Reino, e que após a perda desse caráter defensivo – o que terá acontecido em consequência de vários fatores como a pacificação das relações com os vizinhos espanhóis ou a cimentação das fronteiras – terá levado as suas gentes à procura de outro lugar mais atrativo onde se viriam a fixar. Na ausência de provas concretas sobre o que terá efetivamente sucedido, talvez devamos manter viva parte da lenda, e não nos cingirmos apenas ao que parece ser irrefutável.

Existe neste lugar uma certa solenidade que se torna difícil de descrever a outro cujos olhos nunca tenham estado ali presentes. Assume-se que ali se encontrasse a igreja daquele povoado, talvez isso possa explicar essa atmosfera, mas talvez seja exatamente o facto de hoje haver ali um vazio por preencher, o que acarreta essa tal aura, que o olhar não alcança mas que desperta as sensações de quem o visita. Ali, por entre vestígios de outras habitações e muros, naquilo a que podemos apelidar de um mar de granito, ecoam vozes de um passado longínquo, que lhe retirou vida mas não beleza. Desconhecido por muitos, este lugar é uma preciosidade medieval perdida algures na Beira Alta, que anseia por ser redescoberta. Neste cenário digno de um filme de cinema fantástico, a paisagem envolvente é de uma grandiloquência que impede que alguém lhe fique indiferente. 

A aldeia do Bogalhal, essa tal para onde aquelas gentes fugiram, tentando escapar da maldição das formigas gigantes e supostas devoradoras de crianças, fica apenas a 2km do local de onde partiram. Após uma reorganização administrativa de freguesias, esta freguesia juntamente com a freguesia de Valbom passou a constituir a freguesia de Valbom/Bogalhal e conta hoje com pouco mais de 250 habitantes. Este é também um local muito particular, que padece de alguma forma desse mesma aura de lugar perdido no tempo. No largo principal, encontramos a Igreja Matriz do Bogalhal, de estilo românico e cuja torre sineira aparece colocada na própria fachada e tudo o resto são pequenas ruas, onde o silêncio reina para dar voz aos sons da natureza que ali vive.

Mas voltando ao Bogalhal Velho, esse é sem dúvida um lugar onde vive uma certa poesia, que lhe traz ao de cima o seu lado mais melancólico, como se por estarmos ali fossemos de imediato impelidos a um ato de reflexão e contemplação. Ali o silêncio é cabal e apenas esses sons vagarosos da Natureza parecem conseguir penetrá-lo de forma intermitente. O sentimento de estarmos ali, pode tornar-se tão poderoso ao ponto de sentirmos que estamos a pisar a casa de um monstro adormecido, quem sabe ainda ali sobrevivam alguma das aclamadas formigas. É como se existisse ali ainda algo incandescente, fruto de algum desígnio do passado ainda por cumprir. Apesar dessa sensação, enquanto regressava a casa no caminho de volta, não era esse o pensamento que me assolava. Nesse regresso, a minha imaginação parecia ainda mais desperta do que o habitual e durante toda a viagem, fui construindo um sem fim de histórias que iam colorindo aquele lugar que para sempre ficaria gravado na minha memória. No Bogalhal Velho, onde apenas um esqueleto gótico parece sobreviver, por entre ruínas engolidas pela vegetação, a beleza preencheu o lugar do esquecimento.

Dezembro 2020

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