Sérgio Nunes, a aldeia de Cardosa e o vinho callum

É num lugar peculiar chamado Cardosa, inserido no concelho de Oleiros, onde a sensação de estarmos longe do Mundo, nos atropela e nos acalma na mesma medida, que o Sérgio vive. Não existe rede no telemóvel, mas a conversa estava marcada, e a pequenez do lugar facilitou o encontro. A presença do Sérgio é confiante, logo naqueles primeiros segundos em que o vejo a sair do carro, percebo que ele pertence aqui, e que esta terra de alguma forma também lhe pertence, uma espécie de composição cósmica que faz com que estas duas peças encaixem e façam perfeito sentido. No rosto consigo ler de imediato cansaço e inquietação, uma certa frustração misturada com vontade, e essa vontade rapidamente mostra ser quem ganha essa batalha, como motor de engrenagem que o obriga a continuar, a não baixar os braços e no final de contas, a permanecer inquieto. O nome do seu desassossego é Callum, mas recuemos um pouco na história.

O vinho Callum é um vinho histórico, típico de Oleiros e proveniente de uma casta com o mesmo nome. Callum deriva do latim “casca dura, crosta” e essa designação, encontra significado, na forma como o mesmo resistiu e se adaptou tendo em conta as condições muito particulares deste território. O facto da maioria das videiras desta casta, estarem plantadas perto de cursos e linhas de água, também permitiu que fossem mais resistentes a certas doenças e pragas, e tolerantes à humidade. Segundo nos conta a história, o início da sua produção remonta ao século XVI, pela mão da Ordem de Malta, à época sediada na vila de Crato. Já no século de XIX, esta casta é finalmente identificada pelos serviços ampelográficos e enológicos governamentais, aparecendo na Lista de Castas de Videiras Portuguesas, e sendo atribuída ao concelho de Oleiros.  É sobre este passado que o Sérgio começa a contar a sua história. A da origem do Callum, mas também a sua, e de que forma as duas confluem, estabelecendo hoje o que é o seu presente aqui em Cardosa, e acima de tudo, o que espera ser o desenho do seu futuro.

Sérgio nasceu exatamente aqui, em Cardosa, onde fez o ensino primário, depois teve de ir para Oleiros até completar o 9º ano, e finalmente para Castelo Branco. Entretanto a sua vida profissional levou-o até Espanha e França, e em 2013, regressado a Portugal, é durante uma formação, que conhece Domingos, enquanto seu formador, e pessoa que viria a ser o seu sócio neste projeto. Foi Domingos quem lhe lançou o desafio de criarem algo em comum, o que aliado à sua vontade de regressar a Oleiros, e de poder contribuir para o lugar onde nasceu, criou um casamento perfeito. Em conversa com o Presidente da Câmara à data, o mesmo indicou que havia interesse para se fazer algo com o vinho Callum, e que precisava de alguém no terreno que pudesse mobilizar as pessoas, para que isso fosse possível. Foi no ano seguinte, em 2014, que Sérgio e o seu sócio Domingos, se iniciaram então neste grande desafio, começando por recolher informações sobre todos os pequenos produtores que tinham esta casta. Foi e continua a ser um trabalho árduo, porque os terrenos são pequenos, distantes e as quantidades também bastante reduzidas. Hoje em dia, finda essa missão inicial, já são eles quem fica com toda a produção existente, resultante de todos esses pequenos produtores, aproximadamente vinte, mas a ideia é que ainda este ano, comecem a plantar as suas próprias vinhas, na aldeia de Silvosa, terra do pai de Domingos. 

O espaço para o qual Sérgio abre hoje as portas, uma adega a cheirar a novo na Cardosa, é o resultado de um projeto que se iniciou em março de 2019 e o qual pretende ver finalizado no final deste ano, pela altura do Natal. Todo o espaço foi pensado e desenhado por si, e nele, além da adega e de todo o espaço necessário à produção, haverá provavelmente uma loja, e um espaço onde as pessoas poderão provar e conhecer melhor este que é um vinho histórico. A complexidade burocrática de todos os processos que envolveram e ainda envolvem este projeto, contribuiu para muitos cabelos brancos, confessa Sérgio, mas no segundo seguinte reforça que apesar disso, adora isto. Existe uma grande paixão na forma como Sérgio mostra cada pequeno recanto deste espaço, e em tudo o que espera ver nele, muito do que, será o próprio a construir com as suas próprias mãos. Mas à medida que a conversa avança, é incontornável falar no flagelo dos incêndios, e no quanto o mesmo tem sido particularmente castigador neste concelho. Mas como em tudo o resto, rapidamente transforma o tom da conversa, e mostra como é o tipo de pessoa que gosta de ver sempre o copo meio cheio, e consequentemente vê nessa realidade, a possibilidade de existirem mais pessoas a plantar, conseguindo assim uma nova e maior fonte de rendimento. A certa altura Sérgio fica melancólico, e partilha a história do seu amigo Jorge, alguém que rapidamente se percebe, foi um grande impulsionador deste projeto, mas que infelizmente não estará cá para o poder ver concretizado. No primeiro ano lembra-se de estar apreensivo e de partilhar esses receios com ele, “Olha Jorge, vamos lá ver o que sai daqui”, e ele entre risos respondeu-lhe, Sérgio, vai sair vinho, e eu fiquei tranquilo.”

Nas palavras de Sérgio, Callum é uma “casta brava”, forma de reforçar a sua resistência e a forma como foi sobrevivendo ao longo de quase 500 anos, mas também nele e no seu sócio existe essa mesma força. Para poder trazer à tona com a grandeza que lhe é devida, um vinho que é considerado um “tesouro antropológico”, só poderiam mesmo ser pessoas que verdadeiramente respeitam a sua história e estão conscientes da singularidade deste vinho. Beber um vinho Callum, é e deve ser sentido como uma viagem enológica medieval, um regresso ao passado, a um lugar de memórias e tradições. Não pode ser visto como um outro qualquer vinho, mas sim como algo único, verdadeiramente exclusivo e que por isso deve requerer um ritual quase solene. Pensar em Callum é pensar em valores aqui tão palpáveis como o espírito de comunidade, a preservação e valorização de uma identidade, e tudo isso vai muito além da mera degustação de um vinho branco de baixo teor alcoólico. Adicionalmente, essa experiência terá agora o valor acrescentado de ser o fruto de um trabalho de grande dedicação, feito a muitas mãos, e que significará um marco, não só para Cardosa, como para todo o concelho de Oleiros, e região onde se insere. 

Conhecer este lugar e ouvir tudo o que ele significa e significará, facilita o processo de perceber o que trouxe o Sérgio de volta até cá, e também o porquê de querer ver a sua filha crescer aqui. A despedida soube a um até já muito breve, estando a visita marcada para o final do ano, quando o projeto estiver finalmente concretizado, e essa promessa ficou selada ali. Enquanto seguia no carro, deixando Cardosa para trás, parti com esperança no futuro daquele lugar, e já ansioso por voltar e poder conhecer aquele que será o seu novo capítulo, não me restando qualquer dúvida de que será um momento digno de muitos e sinceros brindes.

Setembro 2020

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