Dona Odete e o Cabrito Estonado de Oleiros

Se a definição de Outono pudesse ser dada através de uma fotografia apenas, essa fotografia teria sido a deste dia, em que conheci pela primeira vez, a famosa Dona Odete. O sol estava tímido mas completamente presente, as folhas das árvores pintadas em todos os tons possíveis, do laranja ao castanho, do dourado ao amarelo, e o vento a aparecer devagar, trazendo o prenúncio do frio, que rapidamente viria a chegar. Em oposição à decadência que naturalmente associamos a esta estação do ano, e a combinar com todo o cenário envolvente, chegou finalmente a Dona Odete, surpreendentemente, a conduzir uma scooter. Logo nos primeiros segundos, enquanto nos sentávamos num banco de jardim, próximo da capela de Nossa Senhora das Candeias, denotei um certo acanhamento da parte da Dona Odete, que se traduziu na forma muito repentina e curta, como se apresentou, “Sou a Maria Odete Rijo, tenho 70 anos e nasci aqui em Oleiros.”

Mas antes de conhecermos a Dona Odete, e de percebermos a sua ligação, não só à vila de Oleiros, como essencialmente à tradição do cabrito estonado, é premente perceber a génese dessa mesma tradição, e de que forma a mesma se materializa. Talvez o mais lógico seja começar por perceber o porquê do termo “estonado”. O uso desta terminologia, prende-se com a forma como o cabrito é confecionado, ou seja, a utilização do verbo estonar, significa assim, extrair o que está à tona, à superfície, o que neste caso são os pêlos do próprio animal, processo que ocorre, após o mesmo ser escaldado. As populações que ao longo dos séculos se foram fixando na região da Beira Interior, dominada por montanha e floresta e consequentemente, pouco propícia à prática da agricultura, perceberam rapidamente a necessidade da criação de gado caprino e ovino. Num aproveitamento de saberes de antigos povos, e como forma de subsistência e de equilíbrio alimentar, estes animais tornaram-se parte integrante da vida, da cultura e da tradição dos beirões. 

A Dona Odete, é hoje um dos nomes, que todos em Oleiros associam à confeção do cabrito estonado, mas essa ligação não vem desde sempre. Começa por contar, que aos 12 anos, foi a idade com que se iniciou no mundo do trabalho, trabalhando na alfaiataria do seu tio, lugar onde permaneceu até aos seus 21 anos. Casou por procuração com o seu marido, que estava a trabalhar em Lourenço Marques, e logo depois foi para lá que seguiu. O marido começou por trabalhar numa fábrica de camisas, mas acabou a trabalhar nos caminhos de ferro. Os seus olhos brilham quando fala nos dois anos que por lá viveu, assumindo sem rodeios que foram os melhores tempos da sua vida. Após os acontecimentos do 25 de Abril, regressou a Oleiros, voltando o seu marido também um mês depois. O marido foi trabalhar como alfaiate, e viria depois ainda a ser motorista dos Bombeiros. Já a Dona Odete, trabalhou durante 21 anos na Steiff, uma fábrica alemã de peluches.

Enquanto vai desenrolando a sua história, embora lhe tente imprimir uma constante leveza, é notório que a mesma nem sempre foi fácil, envolvendo momentos bastante duros. Recua novamente no tempo, para poder finalmente explicar onde nasce a sua ligação ao aclamado cabrito estonado. Foi ainda com vinte e poucos anos, que se começou a interessar mais pela cozinha, tendo decidido participar num curso de culinária. Fala com carinho na voz, da Dona Prazeres, a pessoa que lhe ensinou a arte do cabrito estonado, e com quem acabaria por trabalhar, fazendo cabrito para casamentos, tradição muito comum nessa altura, e que hoje assume já se vai perdendo. Outras mulheres fizeram parte dessa sua aprendizagem, e faz questão de as nomear, desde a Sra. Afonso, cujo nome é também indissociável quando se fala em cabrito estonado, mas também da Sra. Hilda ou da Sra. Maria dos Anjos. Conforme relata estes tempos, percebe-se uma certa melancolia, provavelmente associada a uma agitação de que sente falta, consciente de que certas coisas não voltarão a ser como dantes.

Conta que o assado é uma das formas mais tradicionais de confecionar o cabrito, mas que a receita do cabrito estonado, se destaca pela sua originalidade, o que fez com que se torna-se um prato emblemático e eternamente associado à vila de Oleiros. Explica que após o cabrito ser escaldado, os pêlos devem ser retirados com muita ligeireza, para que depois possa ser temperado e finalmente ser colocado dentro do forno. Confessa que são necessários paus de louro por baixo no tabuleiro, de forma a que o cabrito não toque diretamente no molho, para que a pele venha a ficar estaladiça como a que associamos ao leitão. Quanto aos temperos que devem ser colocados no dia anterior, é indispensável o sal, o alho, o piriri, o vinho branco, o louro, a banha de porco, e certamente alguns segredos que não pode partilhar. Para acompanhar, obrigatória, a clássica batata assada e o habitual arroz de miúdos. Explica ainda que o cabrito não deve ter mais de mês e meio e não mais de uns 6kg, porque de outra forma o processo de estonar seria praticamente impossível. 

Quando o Hotel Santa Margarida abriu em Oleiros, foi Dona Odete quem foi para lá ensinar a arte do cabrito estonado. Tempos que recorda com saudade. Hoje, é através de sua casa, que ainda mantém esta sua atividade, aceitando encomendas, não só de cabrito estonado, como também de maranhos, outro prato muito apreciado nesta zona, e ainda de alguns doces, como as típicas filhós espichadas ou as tigeladas. Quando questionada sobre a sua vida em Oleiros, Dona Odete partilha que gosta de ali viver, que é um lugar sossegado e que as pessoas são simpáticas, mas existe uma saudade implícita nos seus olhos, que explica o brilho com que falou dos seus tempos em Lourenço Marques, e dessa outra vida que lá existiu. Esse passado é algo tão presente em si, como a forma engraçada com que ao longo desta conversa, usa a expressão ya de forma constante, referência desses tempos e que nunca conseguiu abandonar, ou que simplesmente nunca saiu de si. 

Com o mesmo sorriso que trouxe na chegada, com o mesmo sorriso se despediu, pegando novamente na sua scooter, e seguindo viagem com uma ligeireza que nos faria pensar à distância, que de uma jovem se tratava. Assimilando a sua história, e pesando de forma cuidada as suas palavras, a expressão dos seus olhos, os seus gestos e até a sua voz, torna-se fácil concluir, que existe na Dona Odete, claramente ainda essa jovialidade, como se fosse essa a herança dos seus tempos felizes em Lourenço Marques, uma marca que de forma eterna fará de si, um sorriso impossível de esquecer.

Setembro 2020

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