antónio farinha, o pastor de Vale da cuba

Nos primeiros contactos com o Sr. António no sentido de marcar este encontro, duas coisas ficaram bastante evidentes sobre ele, a primeira foi a sua aversão ao mundo da tecnologia, fugindo a sete pés da simples ideia de vir a ser detentor de um telemóvel, a outra foi a paixão pelos seus animais, gerindo todo o seu tempo em função do que necessita de lhes dedicar a eles. Parecem duas constatações sem grande profundidade, mas na verdade são. Para António, o distanciamento que gosta de manter da tecnologia, não é mais do que a sua forma de se manter fiel a uma forma de estar e de viver o mais próximo possível da natureza, e esse argumento está intimamente ligado ao amor que mostra pelos seus animais. Existe nele uma ligação pura e genuína com o que o rodeia, com as suas raízes, com o lugar onde nasceu e cresceu, e tudo isso é palpável pela maneira como o ouvimos falar desse mesmo lugar, e também pela sentimento que lhe guarda de proteção, mostrando o quanto sente na pele, de cada vez que o vê em perigo.

O encontro foi no Vale da Cuba, lugar da freguesia de Isna, no concelho de Oleiros, e não poderia ter sido noutro sítio que não esse, o único a que chama de Casa, desde que ali nasceu, há 58 anos. A única altura da sua vida em que esteve fora, foi quando esteve na tropa, mas finda essa curta etapa e assumindo que ele que nunca gostou muito de fardas, ali regressou, e ali permaneceu até hoje. A vida no campo foi a que sempre conheceu de perto, a mesma que viu pertencer ao seu pai e ao seu avô, sendo que cresceu a viver com essas duas gerações em sua casa. Lembra-se de ainda muito miúdo, sair da escola que frequentava em Ribeira de Isna, e de no regresso a casa, pegar imediatamente ao trabalho. Nas suas palavras não existe a dureza que poderia ser expectável, para uma criança que se via ainda tão pequena, a ter de participar em trabalhos já relativamente pesados, muito pelo contrário. António mostra de forma bastante clara, ao longo de toda a conversa, o quanto gosta desta atividade, como se de alguma forma sentisse até que esta lhe estava destinada, e em cada descrição, parece dissipar-se a linha que o separa da vida no campo, como se um e outro fossem duas metades de um só elemento.

António conta como inicialmente, quando ainda era um miúdo, o forte da sua família, era a floresta. Embora já nessa altura tivessem cabras, era a floresta o foco de trabalho e de rendimento, e por essa razão, tinham inclusive um pastor contratado para desempenhar essa função. Com o primeiro grande incêndio em 1979, esse pastor decidiu ir-se embora, e a grande maioria das pessoas que possuíam rebanhos, decidiram acabar com eles. A sua família, optou pelo contrário, por decidir aumentar o rebanho que já tinha, tendo nessa altura chegado a ter mais de 85 cabras. Durante muito tempo foi o seu pai quem se dedicou mais aos animais, deixando para ele a responsabilidade da agricultura, mas com o avançar da idade, foi António quem acabou por modificar a sua vida de certa forma, para poder dedicar-se também aos animais, algo que sempre gostou muito de fazer. Partilha que ainda chegou a criar um boi por ano, ficando ele com uma metade e dividindo a outra com dois amigos, mas hoje em dia tem apenas as cabras, pouco mais de 40 cabeças. 

Em Vale da Cuba resistem apenas cinco casas e sete habitantes. António conta que na sua juventude eram seis as casas habitadas, mas que em cada uma delas viviam avós, pais e netos. Lembra-se inclusive de fazer parte de uma turma de 34 alunos na escola primária, escola essa que fechou quando a sua filha finalizou a 4ª classe, tendo sido esse o mesmo destino da escola primária que o seu filho frequentou na Isna, a sede de freguesia. É notório nas suas palavras, a tristeza que as mesmas carregam, pelo isolamento a que lugares como este parecem estar reservados, mas acima de tudo, pelo que no seu entender, é uma das grandes consequências dos constantes incêndios, a de afastar as poucas pessoas que ainda ali persistem. A particular brutalidade dos incêndios que ali deflagraram este verão, é ainda um tema muito sensível para si e que lhe causa ainda muita consternação. Nas suas palavras existe uma mistura de impotência mas também de frustração. São as suas cabras a sua maior preocupação, pelo facto de ter visto o pasto que tinha para elas, ficar transformado numa mancha negra. Não é por isto de estranhar, que o amor que tem por estes animais, se torne ainda mais visível, quando partilha que as conhece a todas pelo nome. 

António vai-se revelando ao longo de toda a conversa, um daqueles homens cuja vivência do campo parece ser parte da sua herança genética, como se por acaso o tirássemos daquela envolvência, ele perdesse a sua razão de viver, e esta afirmação que até pode parecer exagerada, de facto não o é. Oleiros, e mais especificamente esta pequena povoação de Vale da Cuba, é em grande parte caracterizada pela própria identidade de António Farinha, o que faz com que conhecer este lugar sem conhecer o próprio, seja uma viagem sem grande propósito. António e o seu amor por este terra, são no final de contas, o que realmente dita a identidade de lugares como este. Se é evidente que a profissão de pastor parece estar condenada à extinção, conhecer um pastor como o fascinante Sr. António, é conhecer também uma parte da nossa cultura  e das nossas tradições, que rapidamente parecem estar a desaparecer. Contudo, embora estes pensamentos acarretem uma certa nostalgia, não é esse o tom com que este encontro termina. É na sua adega, que segundo ele terá mais de 500 anos, que culminam as suas histórias e os seus desabafos, mas também onde me obriga a muitas gargalhadas sentidas, pela força do seu inegável sentido de humor. A fluidez da conversa fez com que o tempo passasse sem que déssemos por ele, e nas despedidas fica de imediato o convite para voltar. 

Enquanto faço a viagem de regresso, penso na impossibilidade de algum dia vir a esquecer o rosto do Sr. António e as horas que passei com ele. São poucas as pessoas que têm este poder, de nos cativar logo no primeiro encontro, mas ele é definitivamente uma dessas pessoas. Penso sobre o que será o destino de Vale da Cuba e de que palavras se escreverá o futuro desse lugar. Num primeiro momento esse pensamento cria em mim algum receio, mas rapidamente esse sentimento se transforma em esperança. Sinto que enquanto o Sr. António for parte daquela paisagem, ela não poderá pedir melhor guardião, e essa certeza faz com que o meu coração se acalme, e que o sorriso com que me despedi do Sr. António, me acompanhe no resto da viagem até casa.

Outubro 2020

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