chef andré ribeiro, a adega dos apalaches e o cabrito estonado 

A gastronomia e as suas tradições, marcam indubitavelmente a cultura e a própria identidade portuguesa. O hábito de estar à mesa, é em nós portugueses, muito mais do que um momento para matar a fome. É um ritual, um momento até de uma certa solenidade, e acima de tudo, uma forma de socialização diferente de todas as outras, mais profunda, que mais nos reflete. Não é por essa razão de estranhar, a forma como outros falam dela, outros que chegam de partes diferentes do globo e que sucumbem aos prazeres da nossa cozinha, como se através dela nos descobrissem, como se através dela ficassem a conhecer parte da nossa história, nos seus vários tempos, passado, presente e futuro. A nossa gastronomia é por todas estas razões uma herança de valor inestimável e um dos maiores repositórios de histórias e de vivências, e a partilha que se segue, contém todos esses ingredientes. 

Falar em Oleiros e não pensar em cabrito estonado, é uma equação praticamente impossível. A ligação entre este histórico prato, de tão original forma de confeção, e este concelho, é nos dias de hoje, inquestionável. Dentro dessa mesma equação, existe ainda um terceiro elemento, falamos obviamente do restaurante “Adega dos Apalaches”. Não é por isso de estranhar, que quando damos a indicação a alguém de que iremos visitar Oleiros, seja essa a primeira referência que nos dão, como se fosse uma falha imperdoável, visitar a vila sem ali parar. O Chef André Ribeiro é não só o responsável pela cozinha do restaurante, como certamente um dos responsáveis pela reputação desse lugar, e pela forma como todos o recomendam enquanto ponto de paragem obrigatória para ficar a conhecer esta tão aclamada iguaria. 

André é natural de Proença-a-nova, mas foi em Figueiró dos Vinhos, que após se ter casaco, começou a trabalhar. Terminado o seu curso de cozinha, começou a trabalhar enquanto empregado de mesa, mas admite que esse contacto direto com o cliente foi algo que sempre lhe deu imenso prazer. Depois foi em Pedrogão Grande, que chegou finalmente à cozinha, onde percebeu o quão grande era essa sua paixão, e foi ali que ficou a trabalhar durante sete anos, deixando que a mesma se fosse sempre intensificando, ditando que o seu caminho só poderia ser naquela direção. Foi o telefonema de uma amiga, que viria a mudar o rumo da história, melhor dizendo, a mudar-lhe a morada, e a descobrir uma nova paixão, dentro da que já detinha pela cozinha, falamos claro está, do cabrito estonado. Esse telefonema viria a dar-lhe a oportunidade de vir trabalhar para Oleiros enquanto chef, e ele agarrou-a com as duas mãos. Admite que no início não foi fácil e que se sentia de alguma forma um forasteiro, mas como em quase tudo, são os começos difíceis que dão lugar às grandes histórias, e no caso do André, não foi diferente. “O ingrediente secreto é o amor. É preciso sentir o grão a abrir e a deitar a goma. No cabrito é preciso sentir o calor do forno, a pele do cabrito. E isto ninguém aprende na escola… a sentir as coisas.” São declarações como esta, que explicam o sucesso do seu percurso, e as centenas, ou até milhares de quilómetros, que muitos fazem, só para vir até Oleiros comer o seu cabrito estonado.

Entre muitas das histórias que certamente existiram desde que abraçou este projeto, decide partilhar uma particularmente curiosa e até caricata. Foi num dia normal como tantos outros, enquanto estava ao forno a preparar cabrito, que foi abordado por dois homens estrangeiros. Mesmo sendo apenas dois, pediram um cabrito inteiro, e que o mesmo viesse diretamente para a mesa, para que pudessem ser eles a trinchá-lo. Ao fim de alguns minutos, chamaram-no à mesa e perguntaram quais eram os ingredientes. Após a explicação de André, pediram imensa desculpa, disseram que pagariam na mesma, mas explicaram que sendo árabes não o poderiam comer (banha de porco e vinho). Pediram então que para o dia seguinte, o nosso chef André prepara-se o mesmo cabrito, mas excluindo os ingredientes que estavam impedidos de comer, ou trocando-os por outros, e assim foi. Desse cabrito inteiro servido apenas para dois, não sobrou nada além dos ossos, e deste episódio ficou o convite imediato para que André fosse à Arábia Saudita e levasse consigo a receita do cabrito estonado. André mesmo estando reticente, aceitou. O curioso é perceber que esta história teve o seu começo afinal na Argentina, onde ao que parece um árabe comeu um cabrito que lhe ficou para sempre na memória. Depois terá viajado até ao Brasil, acreditando que lá poderia repetir essa mesma experiência, e depois de muitas voltas e pesquisas, perceberam que era em Portugal que existia realmente um cabrito único, digno dessa tão longa viagem. 

Rastrear a receita do cabrito estonado é um processo complexo, mas uma das possíveis respostas, poderá estar relacionada com o Padre e explorador português, António de Andrade, primeiro português a visitar o Tibete. Segundo essa hipótese, terá sido ele quem terá trazido essa receita, após ter visto esse processo a ser realizado por indígenas. Sendo essa ou não a história certa, a forma como nos faz regressar a um passado longínquo, parece estar em perfeita sintonia com tudo o que envolve, mesmo nos dias de hoje, a confeção do cabrito estonado. Na “Adega dos Apalaches”, esse regresso é quase imediato pelo vislumbre das panelas de ferro, e principalmente pelo fornos onde o fogo é alimentado a lenha. Lugar onde sabores e saberes antigos, elevam a tradição beirã, criando pratos que aquecem a alma a todos os que o visitam. Segundo André a receita do cabrito estonado é bastante simples, o maior segredo acaba por ser a qualidade extraordinário do produto, e o amor e cuidado com que o mesmo é confeccionado. O facto de o cabrito ser estonado, sendo-lhe retirado todo o pêlo após ser escaldado, faz com que a carne fique especialmente suculenta e a pele fique tão estaladiça, que o ato de a cortar poderia ser comparado a uma bonita sinfonia, tal é a musicalidade que esse momento carrega. 

Num lugar como Oleiros, onde o fogo muitas vezes destrói, é singular a forma como também ele é o responsável por um dos pratos que contam tanto sobre este lugar. É através dele que nasce o tão aclamado cabrito estonado, e nos últimos anos, a importância deste prato enquanto identidade deste território, é inegável. Mas é também através das suas pessoas que esse reconhecimento se torna possível, pessoas como o André, que embora não tendo nascido em Oleiros, se apaixonou pela arte do cabrito estonado e pela preservação de uma tradição que é tão única e por isso tão valiosa. Perante todos estes factos, estão aqui reunidos todos os ingredientes para que o regresso seja breve, e para que qualquer passagem pela vila de Oleiros, ecoe a necessidade de parar e redescobrir a experiência que é comer o cabrito estonado, na Adega dos Apalaches e pelas mãos do simpático chef André.

Outubro 2020

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