A aldeia de álvaro e a sua história

É sob o acolhedor abraço, das escarpas rasgantes do Rio Zêzere, que surge um lugar de rara beleza e de atmosfera mágica, chamado Álvaro. A ideia de dar a um lugar – neste caso a uma aldeia – um nome próprio, pode parecer despropositada numa primeira análise, inusitada ou mesmo sem propósito, mas depois de conhecermos Álvaro, essa estranheza desvanece-se rapidamente. Álvaro é acima de qualquer outra coisa, um lugar de pessoas. São elas e as suas vivências, quem cria a identidade e a forma como vemos e sentimos este lugar. É certo que a natureza que o envolve, ditará sempre parte dos seus contornos, e na mesma medida, parte daquilo que faz de si o lugar especial que é, contudo são as expressões, as rugas, os gestos, os trejeitos da fala, a forma de andar, a alma e as histórias desta gente, quem realmente acresce significado a Álvaro. Ali vive uma portugalidade que já se perdeu na maioria dos lugares. Uma portugalidade que diz mais sobre nós do que um número infinito de livros de história. 

Segundo atestam várias cartas régias e inclusive, o foral concedido por D. Manuel, no ano de 1514, Álvaro terá sido nessa época, sede de concelho, constituído pelas freguesias de Amieira, Sobral e Madeira e assim terá permanecido até 1836. Quanto à sua tão curiosa toponímia, cujo sentido menos literal e talvez mais filosófico ou mesmo poético, foi já acima definido, existe uma história considerada a provável, embora saibamos que nunca existirão certezas sobre estes estudos. Contudo, segundo se encontra escrito, a sua toponímia deve-se ao nome de um criado, Álvaro Pires, que terá ficado encarregue de governar estas terras na ausência do seu senhor, que estava na guerra. O fidalgo nunca mais terá regressado, e a povoação terá ficado assim com o nome de Álvaro Pires. Se pensarmos na sua figura, enquanto fiel guardião destas terras, a escolha do seu nome ganha até uma nota de homenagem póstuma, eternizando de alguma forma, uma espécie de proteção sobre este lugar. 

Álvaro é também um lugar de fé. O facto de ter pertencido à Ordem de Malta, denota esta aldeia de um património religioso notável, cuja presença é tão evidente e imediata, que se sente logo no primeiro impacto, logo no primeiro vislumbre. Essa herança é tão impressionante como o é o número de capelas que ali podemos encontrar, o que transforma a aldeia de Álvaro numa espécie de santuário a céu aberto, onde não se pode descurar a observação do mais ínfimo detalhe, porque existe história gravada em cada recanto, em cada pedra. Ainda no que concerne a temática do religioso, impossível não fazer uma referência ao esqueleto do capitão. Segundo diz a história, na Igreja da Misericórdia, corria o ano de 1797 foi acrescentada uma ala lateral. O inesperado está no chão da Capela do Senhor dos Passos, onde sob o soalho de madeira, se pode ver uma lápide tumular de José Rodrigues Freire. A capela foi uma promessa do capitão da cavalaria do Príncipe, e como este não morreu na guerra, mandou edificar a capela e o seu corpo foi trasladado para ali em 1806, vindo diretamente do Brasil. Mais de dois séculos depois, o esqueleto permanece ali intacto e basta retirar uma tábua, mesmo ao lado da placa tumular, para se ver o seu crânio.

Além dessa relação evidente entre Álvaro e o seu inestimável património religioso, que obrigatoriamente lhe confere certas características, existe uma outra ligação, que é igualmente premente referir, falamos da ligação entre esta aldeia e o Rio Zêzere. Muito mais do que funcionar como um miradouro sobre ela, a ligação entre ambos é algo que apenas podemos definir de umbilical. Esta aldeia branca, pertencente às Aldeias de Xisto, namora o Zêzere como nenhuma outra, e encontra ali um dos vales mais bonitos de todo o percurso do rio. Uma das margens do rio foi inclusivamente aproveitada para uma praia fluvial, com duas piscinas e um cais de ancoragem. A própria vivência do rio parece estar impressa nas gentes que ali vivem, como se o mesmo pudesse fazer parte da própria herança genética. Ele não faz apenas parte da história deste lugar, mas ele é também uma das principais personagens de muitas das histórias que ali se escreveram e ainda escrevem, sempre omnipresente, sempre enquanto parte integrante do retrato de Álvaro. Estendida ao longo da encosta, no colo da Albufeira do Cabril, a aldeia surge assim como uma muralha que protege a passagem do rio. 

A ligação de Álvaro com o rio, é parte integrante de uma ligação maior, isto é, a ligação desta aldeia com a própria natureza que a envolve. Visitar Álvaro é um privilégio pelos mais variados motivados, mas um dos mais evidentes será certamente pela presença tão impactante das suas paisagens, que parecem ter sido desenhadas pela forma tão harmoniosa como se apresentam. É por tudo isto premente conhecer por dentro esta aldeia, não só através das suas ruas e das suas imensas capelas, mas também caminhando entre os seus pinheiros, eucaliptos e sobreiros, atravessando a sua bonita ponte romana, passando pela Ribeira de Alvelos, e deixando que o vislumbre do magnífico Rio Zêzere seja o perfeito companheiro desta viagem. Os cenários ao longo deste percurso são idílicos, contendo neles aquela rara beleza que não cabe dentro de nenhuma fotografia, por mais que a queiramos captar de todas as formas. Neste lugar com nome de pessoa, apenas a memória funciona enquanto forma de armazenamento de retratos, e sabendo que a mesma será sempre falível, até essa particularidade funciona como chamariz ao obrigatório regresso. 

Visitar este tão antigo povoado, tem assim sabor de travessia, e existe nele algo que nunca se revela na sua totalidade, como se detivesse ele o poder de instigar em nós, uma constante necessidade de voltar, de revisitar, de rever com outros olhos e de observar com maior preceito. Nenhuma visita a Álvaro é igual, porque todas marcam novas e diferentes percepções, como se por efeitos de magia as coisas mudassem de sítio e se reorganizassem, o que, se de certa forma nos inquieta, ao mesmo tempo nos deixa mais vigilantes, mais alerta. Ali todos os cheiros contam, todas as texturas, todas as formas e cores e acima de tudo, todas as pessoas que se cruzam no nosso caminho. Existe na atmosfera deste lugar, uma poderosa força magnética, e isso explica a forma como nos sentimos sempre bem ali, não havendo qualquer tipo de estranheza, mesmo quando o conhecemos e sentimos pela primeira vez. Pode parecer absurdo, e certamente muito pouco realista, mas é como se na chegada estivéssemos a matar saudades. Como se noutra vida ali tivéssemos vivido ou apenas estado. Serão muito poucos os lugares por esse Mundo fora, cuja experiência se possa assimilar a esta, e isso explica a transcendência deste lugar, o facto de ninguém lhe conseguir ficar indiferente e as sensações que em nós desperta.

Setembro 2020

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