KERALA E AS SUAS PESSOAS.

 

Tenho uma velha e sábia máxima que diz qualquer coisa do género “são as pessoas que fazem os lugares”. Acredito, de coração, que uma paisagem pode marcar, mas uma boa conversa, pode ficar no coração, quem sabe, para sempre. Para mim, esta coisa das memórias, aquilo que busco, insaciavelmente, em cada viagem, seja em Freixo de Espada a Cinta ou na Índia, tem tudo a ver com conversas, olhares e conexões. Na partida para a Índia, já sabia que iria encontrar um clima diferente, comida diferente, uma língua e uma cultura diferentes. É claro que também sabia que iria encontrar pessoas diferentes, uma diferença que iria além da cor da pele. Só não sabia era que todas estas diferenças iriam ser encurtadas, muitas vezes, com simples sorrisos. E muitas vezes o simples pode ser perfeito. 

Poderia contar mil histórias sobre contactos que tive na minha viagem por Kerala. Foram tantas e tantas as coisas que me marcaram. Recordo tantos instantes que sinto com clareza que tenho um álbum, nas minhas memórias chamado “Kerala, Índia, 2018”. Recordo a primeira imagem que vi da janela no avião, recordo o primeiro passo no aeroporto, recordo a primeira conversa com o senhor que me carimbava o passaporte, recordo os primeiros sorrisos de “bem-vindo” que me lançaram à saída do aeroporto. Recordo também os casais que, envergonhadamente, namoravam nos jardins de Trivandrum, recordo as caras de muitas pessoas que seguiam para as suas casas nos típicos autocarros indianos, recordo as mulheres que lavavam as suas roupas junto aos canais de Alleppey, recordo os pescadores de Kochi, recordo as senhoras que “bordavam” as plantações de chá em Munnar e recordo as famílias que estavam nas praias de Kannur. Poderia dar mais mil exemplos. Todos os exemplos a envolverem pessoas. É rara a memória apenas de uma paisagem, sem qualquer elemento humano. Muitas das memórias são apenas frames,sem qualquer contacto. Construídos numa base, não de diferença, mas sobretudo de admiração. Acho que foi mesmo essa a minha linha evolutiva no contacto com as pessoas de Kerala. Primeiro uma diferença, que aos meus olhos parecia ser um muro que impediria qualquer aproximação, mas que depressa a diferença se transformou em admiração, com o tal muro a ruir como um castelo de cartas. 

Muitas histórias que vivi, simplesmente, não as consigo contar. Não que sejam um segredo ou que tenha algum problema de memória, ou de adjectivação de sentimentos. Existem momentos tão simples e tão marcantes que qualquer palavra que seja dita sobre esses momentos ficará sempre à quem do foi vivido. Talvez pela mistura do contacto, com o cenário, cheiros e cores, seja um momento demasiado complexo de descrever, mesmo que seja apenas um segundo de história. Sinto que ficará sempre a dever à realidade. E, meus amigos, são poucas as coisas que me deixam sem palavras. Mas é claro que não poderia deixar de contar com mais detalhe algumas histórias que envolvem pessoas. Conto três. 

Pescadores de Kannur 

Numa manhã quente e húmida (o normal), estava sentado na esplanada do hotel onde estava hospedado, com uma deslumbrante vista para o mar, a ler um livro. Já sabia que na praia, a cerca de 100 metros do hotel, existia uma aldeia de pescadores, ainda pensei em ir até lá, mas como estava cansado e vi pouco movimento por lá, por isso resolvi aproveitar para relaxar um pouco. Passada cerca de meia hora de livro e relaxamento, vi 3 barcos, tipo canoas, vindos do mar, a aproximarem-se da praia. Não resisti. Larguei o livro, peguei na máquina fotográfica, desci as escadas do hotel e desatei a correr praia fora. Queria ver o pescado e tirar uma fotografias aos pescadores. O passo de corrida foi preciso, a adrenalina de uma nova experiência funciona sempre bem. Cheguei ao local de desembarque ao mesmo tempo que as canoas. Tudo perfeito e de sorriso na cara até ao momento em que dou de caras com os pescadores. Apanhei um susto de morte. Juro que apanhei. Todos os pescadores tinham um máscara na cabeça, tipo meia, só com os olhos e a boca com abertura. Parecia que vinham de um assalto a um banco e não de uma normal pescaria. Juro que fiquei congelado por segundos, mesmo com os 35° que se faziam sentir. Só pensei: “são traficantes de droga e estou sozinho, com uma máquina fotográfica na mão, em frente a eles”, “vão- me matar aqui!”. Eles saíram da canoa, pararam e olharam para mim. Este “congelamento” durou uns 15 segundos. Até que um dos mascarados, acenou e sorriu para mim. Aí pensei “acho que um traficante não me iria cumprimentar assim”. Passado um minuto, já tinha tirado não sei quantas fotos, já tínhamos mencionado o Cristiano Ronaldo e já pousavam para a fotografia. Mostraram-me o que pescaram (mexilhões), falamos um pouco, ou melhor rimos um pouco e fizemos uns gestos, já que eles não falavam inglês. Fiquei cerca de uma hora com eles. Assisti a venderem o pescado, a limparem os barcos e ainda os segui até casa. Onde se despediram de mim, com uma vontade gigante de falar sobre muitas coisas, da vida deles e da minha vida. Mas, para mim, os sorrisos sinceros, foram suficientes para a empatia, penso que, mútua. Senti, sem exagero, que até vontade de me convidar para almoçar em casa deles, eles tinham. Afinal, os traficantes mascarados, eram simpáticos pescadores, que usavam máscaras, em forma de meia, para proteger as suas caras do sol. 

Viagem de Comboio 

Se existe experiência icónica para ser vivida na Índia, é fazer uma viagem de comboio. Eu fiz. Para reforçar a coisa, fiz essa viagem à noite, com a duração de 8 horas. Num dos últimos dias da minha viagem pela região de Kerala, fiz a ligação entre Kanhangad e Kochi de comboio. Era inicio de noite quando cheguei à estação local. Enorme e tal como em todos os lados da Índia, com pessoas por todo o lado. Umas deitadas, outras cheias de filhos, outras com animais. Normal. Estava um calor infernal, de colar a roupa ao corpo e de não se estar confortável em lado nenhum. Com cerca de meia hora de atraso lá chega o comboio, literalmente, a perder de vista. Era gigante. Não existe primeira classe ou algo parecido por ali. Existem duas hipóteses ou vais sentado ou vais deitado. Eu tinha bilhete para a hipótese deitado. Cada compartimento tinha 8 camas, num espaço com pouco mais de 9m2. Eu estava a viajar com um grupo de cerca de 30 viajantes, de várias nacionalidades. Quase todos ficaram juntos. No meu compartimento, apenas ficou uma viajante ucraniana. O resto, tudo indiano. Primeiro “problema”, para 8 camas, existiam umas 15 pessoas. Ou seja, esta malta compra um bilhete para uma pessoa, e esse bilhete dá também para os filhos e os sobrinhos. Assim que lá cheguei, era a anarquia total. Apesar de todos indianos, poucos falavam a mesma língua e pela confusão com os lugares poucos tinham andado de comboio anteriormente. Resultado provisório, a viajante ucraniana fugiu e eu só me ria. Cumprimentei um a um. Passados 5 minutos já estava sentado no meio deles. Nessa altura percebi que dois, um casal, falava um pouco de inglês. Passados 15 minutos já estava a mostrar fotografias da minha viagem pela Índia. Passados 30 minutos, mesmo os que não falavam inglês já me tratavam pelo nome e já tinham guardado uma cama, com lençóis para mim. Passado uma hora, o filho do casal já era o meu melhor amigo e passava o tempo em cima de mim para brincar com ele. Durante as cerca de 4 horas de viagem sem estar deitado, para dormir, mostrei fotos de Portugal, mostrei fotos da Liliana, falei na Alice, mostrei videos do Youtube a mostrar receitas de bacalhau, enfim, deu para quase tudo. Sempre na maior da tranquilidade. Enquanto eu confraternizava com os meus novos amigos indianos, o meu grupo de viagem mantinha-se compacto. No nosso grupo existiam também indianos, fotógrafos, guias ou membros do departamento de turismo. De vez em quando lá passavam pelo meu compartimento e riam-se por eu estar feliz e contente no meio daquela algazarra toda. A bem dizer, isto já era procedimento comum meu ou melhor, os indianos em muitas outras situações já tinham procurado conviver comigo, com mais frequência do que com os meus companheiros de outros países. Um fotógrafo indiano, o Jinson, tinha uma teoria que era por eu ser moreno e ser parecido com os indianos. Numa das passagens pelo compartimento, o Jinson, mais uma vez, riu-se e disse qualquer coisa do tipo “lá estás tu outra vez no meio dos indianos”. Eu ri-me e expliquei ao casal que falava inglês a teoria do Jinson. Ao que a mulher responde com uma cara de espanto a olhar para mim e diz: “tu não és nada parecido com os indianos, tu és é muito simpático. E nós gostamos de pessoas simpáticas”. É claro que ia morrendo de orgulho. Antes de deitar, despedi-me de todos, em especial deste casal e do seu filho. Até já trocámos e-mails. 

Festival Hindu de Vallachira 

Estava no Festival Hindu de Vallachira. Uma coisa impressionante. Era noite e o festival tinha milhares e milhares de pessoas, tudo descalço, som de tambores, tochas com fogo e sete elefantes. Não é preciso dizer que os elefantes eram gigantes? Com homens em cima dos elefantes, enfim, um cenário de filme, que ainda não acreditava que o estava a viver. Foi mesmo das experiências mais impressionantes que vivi na Índia (vou contar a história em outro capítulo). Os elefantes, sagrados e símbolos de prosperidade, eram as estrelas deste festival. Mais tarde vi na rua os cartazes a anunciar o festival, e é imaginar os tradicionais cartazes de festivais de música ocidentais e substituir a foto de uma qualquer banda de música pela fotografia de um elefante. E sim, tal como as bandas, existem uns elefantes que são mais populares que outros. Talvez sejam mais sagrados. Pois bem, os elefantes, um a um, faziam uma espécie de circuito e depois “estacionavam” à porta do templo, à espera que os outros elefantes chegassem e começasse o momento alto do festival com os sete elefantes perfilados. Ninguém se podia aproximar dos elefantes. Estava eu sozinho, perdido no meio do festival, quando chega um grupo de 4/5 indianos e me “cerca”. Mil perguntas, de onde eu era, o que estava ali a fazer, se estava a gostar, mas com um entusiasmo tal que já estava com medo e a pensar que iam fazer de mim um guisado com batatas. O entusiasmo continuou. Selfies, contas de Instagram e até o whatsapp queriam. Aí tive de meter o travam. Só me disseram que era para me ajudar se eu precisasse de alguma coisa. Eu sou europeu e já só pensava, estes gajos matam-me aqui e ninguém dá por nada. Sim, aquela teoria de “quando a esmola é muita, o pobre desconfia” não se aplica por aqui. Queriam e queriam, mesmo, que eu me sentisse bem no festival deles. Até que um deles diz “eu tenho um primo de um primo que é amigo do dono de um dos elefantes, vou ver se o consegues conhecer”. 2 minutos de telefonemas e 5 minutos de caminhada e estava eu em frente ao templo, no meio de dois elefantes cheios de ouro a falar com o dono de um dos elefantes que estava vestido como o marajá. Com milhares e milhares de pessoas à minha frente. Acho que não percebi três palavras do que o senhor vestido de marajá me disse, mas agradeci-lhe o momento umas vinte vezes. Sim, toquei no elefante que é quase a mesma coisa que tocar num santo vivo. No meio disto tudo, os meus novos amigos esperavam por mim a uns 50 metros de distância. Sim, eles arranjaram o momento mas só eu é que o vivi. Dei-lhes um abraço e segui. 

O que a Índia e as suas pessoas tem de tão especial? Que nos marca, nos coloca desconfortáveis, que nos deixa mais emotivos e que talvez nos faça olhar para dentro e, surpresa das surpresas, para darmos de caras com o nosso eu mais sincero. A minha resposta é um claro “não sei”. Com a certeza que uma resposta pouco importa, para tamanha grandeza e explosão de sentimentos. É a Índia, meus amigos.

 

Tenho uma velha e sábia máxima que diz qualquer coisa do género “são as pessoas que fazem os lugares”. Acredito, de coração, que uma paisagem pode marcar, mas uma boa conversa, pode ficar no coração, quem sabe, para sempre. Para mim, esta coisa das memórias, aquilo que busco, insaciavelmente, em cada viagem, seja em Freixo de Espada a Cinta ou na Índia, tem tudo a ver com conversas, olhares e conexões. Na partida para a Índia, já sabia que iria encontrar um clima diferente, comida diferente, uma língua e uma cultura diferentes. É claro que também sabia que iria encontrar pessoas diferentes, uma diferença que iria além da cor da pele. Só não sabia era que todas estas diferenças iriam ser encurtadas, muitas vezes, com simples sorrisos. E muitas vezes o simples pode ser perfeito. 

Poderia contar mil histórias sobre contactos que tive na minha viagem por Kerala. Foram tantas e tantas as coisas que me marcaram. Recordo tantos instantes que sinto com clareza que tenho um álbum, nas minhas memórias chamado “Kerala, Índia, 2018”. Recordo a primeira imagem que vi da janela no avião, recordo o primeiro passo no aeroporto, recordo a primeira conversa com o senhor que me carimbava o passaporte, recordo os primeiros sorrisos de “bem-vindo” que me lançaram à saída do aeroporto. Recordo também os casais que, envergonhadamente, namoravam nos jardins de Trivandrum, recordo as caras de muitas pessoas que seguiam para as suas casas nos típicos autocarros indianos, recordo as mulheres que lavavam as suas roupas junto aos canais de Alleppey, recordo os pescadores de Kochi, recordo as senhoras que “bordavam” as plantações de chá em Munnar e recordo as famílias que estavam nas praias de Kannur. Poderia dar mais mil exemplos. Todos os exemplos a envolverem pessoas. É rara a memória apenas de uma paisagem, sem qualquer elemento humano. Muitas das memórias são apenas frames,sem qualquer contacto. Construídos numa base, não de diferença, mas sobretudo de admiração. Acho que foi mesmo essa a minha linha evolutiva no contacto com as pessoas de Kerala. Primeiro uma diferença, que aos meus olhos parecia ser um muro que impediria qualquer aproximação, mas que depressa a diferença se transformou em admiração, com o tal muro a ruir como um castelo de cartas. 

Muitas histórias que vivi, simplesmente, não as consigo contar. Não que sejam um segredo ou que tenha algum problema de memória, ou de adjectivação de sentimentos. Existem momentos tão simples e tão marcantes que qualquer palavra que seja dita sobre esses momentos ficará sempre à quem do foi vivido. Talvez pela mistura do contacto, com o cenário, cheiros e cores, seja um momento demasiado complexo de descrever, mesmo que seja apenas um segundo de história. Sinto que ficará sempre a dever à realidade. E, meus amigos, são poucas as coisas que me deixam sem palavras. Mas é claro que não poderia deixar de contar com mais detalhe algumas histórias que envolvem pessoas. Conto três. 

Pescadores de Kannur 

Numa manhã quente e húmida (o normal), estava sentado na esplanada do hotel onde estava hospedado, com uma deslumbrante vista para o mar, a ler um livro. Já sabia que na praia, a cerca de 100 metros do hotel, existia uma aldeia de pescadores, ainda pensei em ir até lá, mas como estava cansado e vi pouco movimento por lá, por isso resolvi aproveitar para relaxar um pouco. Passada cerca de meia hora de livro e relaxamento, vi 3 barcos, tipo canoas, vindos do mar, a aproximarem-se da praia. Não resisti. Larguei o livro, peguei na máquina fotográfica, desci as escadas do hotel e desatei a correr praia fora. Queria ver o pescado e tirar uma fotografias aos pescadores. O passo de corrida foi preciso, a adrenalina de uma nova experiência funciona sempre bem. Cheguei ao local de desembarque ao mesmo tempo que as canoas. Tudo perfeito e de sorriso na cara até ao momento em que dou de caras com os pescadores. Apanhei um susto de morte. Juro que apanhei. Todos os pescadores tinham um máscara na cabeça, tipo meia, só com os olhos e a boca com abertura. Parecia que vinham de um assalto a um banco e não de uma normal pescaria. Juro que fiquei congelado por segundos, mesmo com os 35° que se faziam sentir. Só pensei: “são traficantes de droga e estou sozinho, com uma máquina fotográfica na mão, em frente a eles”, “vão- me matar aqui!”. Eles saíram da canoa, pararam e olharam para mim. Este “congelamento” durou uns 15 segundos. Até que um dos mascarados, acenou e sorriu para mim. Aí pensei “acho que um traficante não me iria cumprimentar assim”. Passado um minuto, já tinha tirado não sei quantas fotos, já tínhamos mencionado o Cristiano Ronaldo e já pousavam para a fotografia. Mostraram-me o que pescaram (mexilhões), falamos um pouco, ou melhor rimos um pouco e fizemos uns gestos, já que eles não falavam inglês. Fiquei cerca de uma hora com eles. Assisti a venderem o pescado, a limparem os barcos e ainda os segui até casa. Onde se despediram de mim, com uma vontade gigante de falar sobre muitas coisas, da vida deles e da minha vida. Mas, para mim, os sorrisos sinceros, foram suficientes para a empatia, penso que, mútua. Senti, sem exagero, que até vontade de me convidar para almoçar em casa deles, eles tinham. Afinal, os traficantes mascarados, eram simpáticos pescadores, que usavam máscaras, em forma de meia, para proteger as suas caras do sol. 

Viagem de Comboio 

Se existe experiência icónica para ser vivida na Índia, é fazer uma viagem de comboio. Eu fiz. Para reforçar a coisa, fiz essa viagem à noite, com a duração de 8 horas. Num dos últimos dias da minha viagem pela região de Kerala, fiz a ligação entre Kanhangad e Kochi de comboio. Era inicio de noite quando cheguei à estação local. Enorme e tal como em todos os lados da Índia, com pessoas por todo o lado. Umas deitadas, outras cheias de filhos, outras com animais. Normal. Estava um calor infernal, de colar a roupa ao corpo e de não se estar confortável em lado nenhum. Com cerca de meia hora de atraso lá chega o comboio, literalmente, a perder de vista. Era gigante. Não existe primeira classe ou algo parecido por ali. Existem duas hipóteses ou vais sentado ou vais deitado. Eu tinha bilhete para a hipótese deitado. Cada compartimento tinha 8 camas, num espaço com pouco mais de 9m2. Eu estava a viajar com um grupo de cerca de 30 viajantes, de várias nacionalidades. Quase todos ficaram juntos. No meu compartimento, apenas ficou uma viajante ucraniana. O resto, tudo indiano. Primeiro “problema”, para 8 camas, existiam umas 15 pessoas. Ou seja, esta malta compra um bilhete para uma pessoa, e esse bilhete dá também para os filhos e os sobrinhos. Assim que lá cheguei, era a anarquia total. Apesar de todos indianos, poucos falavam a mesma língua e pela confusão com os lugares poucos tinham andado de comboio anteriormente. Resultado provisório, a viajante ucraniana fugiu e eu só me ria. Cumprimentei um a um. Passados 5 minutos já estava sentado no meio deles. Nessa altura percebi que dois, um casal, falava um pouco de inglês. Passados 15 minutos já estava a mostrar fotografias da minha viagem pela Índia. Passados 30 minutos, mesmo os que não falavam inglês já me tratavam pelo nome e já tinham guardado uma cama, com lençóis para mim. Passado uma hora, o filho do casal já era o meu melhor amigo e passava o tempo em cima de mim para brincar com ele. Durante as cerca de 4 horas de viagem sem estar deitado, para dormir, mostrei fotos de Portugal, mostrei fotos da Liliana, falei na Alice, mostrei videos do Youtube a mostrar receitas de bacalhau, enfim, deu para quase tudo. Sempre na maior da tranquilidade. Enquanto eu confraternizava com os meus novos amigos indianos, o meu grupo de viagem mantinha-se compacto. No nosso grupo existiam também indianos, fotógrafos, guias ou membros do departamento de turismo. De vez em quando lá passavam pelo meu compartimento e riam-se por eu estar feliz e contente no meio daquela algazarra toda. A bem dizer, isto já era procedimento comum meu ou melhor, os indianos em muitas outras situações já tinham procurado conviver comigo, com mais frequência do que com os meus companheiros de outros países. Um fotógrafo indiano, o Jinson, tinha uma teoria que era por eu ser moreno e ser parecido com os indianos. Numa das passagens pelo compartimento, o Jinson, mais uma vez, riu-se e disse qualquer coisa do tipo “lá estás tu outra vez no meio dos indianos”. Eu ri-me e expliquei ao casal que falava inglês a teoria do Jinson. Ao que a mulher responde com uma cara de espanto a olhar para mim e diz: “tu não és nada parecido com os indianos, tu és é muito simpático. E nós gostamos de pessoas simpáticas”. É claro que ia morrendo de orgulho. Antes de deitar, despedi-me de todos, em especial deste casal e do seu filho. Até já trocámos e-mails. 

Festival Hindu de Vallachira 

Estava no Festival Hindu de Vallachira. Uma coisa impressionante. Era noite e o festival tinha milhares e milhares de pessoas, tudo descalço, som de tambores, tochas com fogo e sete elefantes. Não é preciso dizer que os elefantes eram gigantes? Com homens em cima dos elefantes, enfim, um cenário de filme, que ainda não acreditava que o estava a viver. Foi mesmo das experiências mais impressionantes que vivi na Índia (vou contar a história em outro capítulo). Os elefantes, sagrados e símbolos de prosperidade, eram as estrelas deste festival. Mais tarde vi na rua os cartazes a anunciar o festival, e é imaginar os tradicionais cartazes de festivais de música ocidentais e substituir a foto de uma qualquer banda de música pela fotografia de um elefante. E sim, tal como as bandas, existem uns elefantes que são mais populares que outros. Talvez sejam mais sagrados. Pois bem, os elefantes, um a um, faziam uma espécie de circuito e depois “estacionavam” à porta do templo, à espera que os outros elefantes chegassem e começasse o momento alto do festival com os sete elefantes perfilados. Ninguém se podia aproximar dos elefantes. Estava eu sozinho, perdido no meio do festival, quando chega um grupo de 4/5 indianos e me “cerca”. Mil perguntas, de onde eu era, o que estava ali a fazer, se estava a gostar, mas com um entusiasmo tal que já estava com medo e a pensar que iam fazer de mim um guisado com batatas. O entusiasmo continuou. Selfies, contas de Instagram e até o whatsapp queriam. Aí tive de meter o travam. Só me disseram que era para me ajudar se eu precisasse de alguma coisa. Eu sou europeu e já só pensava, estes gajos matam-me aqui e ninguém dá por nada. Sim, aquela teoria de “quando a esmola é muita, o pobre desconfia” não se aplica por aqui. Queriam e queriam, mesmo, que eu me sentisse bem no festival deles. Até que um deles diz “eu tenho um primo de um primo que é amigo do dono de um dos elefantes, vou ver se o consegues conhecer”. 2 minutos de telefonemas e 5 minutos de caminhada e estava eu em frente ao templo, no meio de dois elefantes cheios de ouro a falar com o dono de um dos elefantes que estava vestido como o marajá. Com milhares e milhares de pessoas à minha frente. Acho que não percebi três palavras do que o senhor vestido de marajá me disse, mas agradeci-lhe o momento umas vinte vezes. Sim, toquei no elefante que é quase a mesma coisa que tocar num santo vivo. No meio disto tudo, os meus novos amigos esperavam por mim a uns 50 metros de distância. Sim, eles arranjaram o momento mas só eu é que o vivi. Dei-lhes um abraço e segui. 

O que a Índia e as suas pessoas tem de tão especial? Que nos marca, nos coloca desconfortáveis, que nos deixa mais emotivos e que talvez nos faça olhar para dentro e, surpresa das surpresas, para darmos de caras com o nosso eu mais sincero. A minha resposta é um claro “não sei”. Com a certeza que uma resposta pouco importa, para tamanha grandeza e explosão de sentimentos. É a Índia, meus amigos.

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