pessoas de castelo de vide: António eustáquio

António Eustáquio não nasceu em Castelo de Vide. António nasceu e cresceu na cidade de Portalegre e viveu ainda, uma fase considerável da sua vida, em Lisboa. Contudo, existem duas características de António que lhe são bastante evidentes, e facilmente constatáveis depois de apenas alguns minutos na sua presença. A primeira delas é o seu amor pela música. Um amor que rapidamente percebemos passa muito pelo ensino, pela transmissão de conhecimento ao outro, pela passagem de um saber que para ele é genuinamente precioso. A segunda, a sua familiaridade com a vila de Castelo de Vide. Não ter nascido ali foi apenas um pormenor, um detalhe sem importância no enquadramento da sua história, porque hoje, aqui, ele está perfeitamente enquadrado na paisagem, e a sua essência está também ela, perfeitamente mesclada com a de Castelo de Vide. 

A música parece ser parte integrante da sua vida desde que se lembra de existir, como se de alguma forma esse dom lhe tivesse sido entregue ainda no ventre da sua mãe, e no decorrer dos anos tivesse apenas aperfeiçoado uma técnica já existente. As suas palavras carregam uma leveza tão absoluta quando falam de música, que faz tudo parecer genuinamente fácil, como se essa aprendizagem fosse afinal algo que está ao alcance de todos. É essa sua natureza que certamente fará de si um excelente professor, puramente crente na capacidade dos outros e ainda tão apaixonado pela música, como se está pelo primeiro amor. O António é alguém de conversa fácil, porque com ele tudo são pequenas histórias, peripécias e aventuras, e tudo é passível de ser contado entre uma gargalhada ou um suspiro sentido. 

António nasceu com um ouvido que sabia ler melodias, muito antes sequer de se iniciar na aprendizagem da música. É como se de alguma forma a linguagem musical lhe tivesse sido pré-instalada e o conhecimento que viria a adquirir ao longo da sua formação, fosse apenas algo comparável à afinação de um instrumento ou à atualização de um sistema já de si avançado. Com o decorrer da conversa, que flui tão naturalmente como uma dessas melodias que António compõe, a relevância da música na sua vida e na sua forma de estar, vai tornando-se cada vez mais evidente. No fundo é como se fossem dois elementos indissociáveis e como se a ausência de um implicasse a morte do outro. O que também vai emergindo através das suas palavras é a certeza de que embora a música lhe tenha sido de alguma forma entregue, como se fosse parte da sua combinação genética, por outro lado, houve também da sua parte, uma vontade constante de correr atrás dela. 

A sua ligação a Castelo de Vide é também ela de cariz musical. Se Portalegre conta muito do que foram os seus anos de aprendizagem e Lisboa muito do que foi a sua entrada no mercado de trabalho, é em Castelo de Vide que no fundo se vem encontrar com a sua essência. A sua mudança para esta vila permitiu-lhe deslindar o que seria o seu percurso pessoal enquanto músico e essa viagem foi indubitavelmente facilitada pela tranquilidade deste lugar. O caos de Lisboa foi em si uma escola, tanto a nível pessoal como profissional, mas foi na serenidade de Castelo de Vide que conseguiu finalmente estabelecer a sua individualidade, não só enquanto professor, mas acima de tudo, enquanto músico e compositor. 

Finda esta introdução, é chegado o momento de apagar as luzes e de deixar o homem de quem se fala brilhar. Ninguém melhor do que o próprio António Eustáquio para contar em tom descontraído e informal, passagens desta sua história, onde a música e Castelo de Vide se assumem como elementos chave, e onde a sua personalidade viva e efervescente se vai iluminando a cada lembrança, a cada pequena história, a cada nota.

Carlos Bernardo: Como começou, a sua vida, a sua história, a música?

António Eustáquio: Eu não sou de Castelo de Vide, não sou Castelvidense. Eu nasci em Portalegre, estou a viver aqui há precisamente 35 anos. Casei com uma pessoa cuja mãe, era daqui e tinha aqui uma casa, e nós viemos para aqui. A minha vida foi quase na totalidade ligada à música.

Carlos Bernardo: Alguma razão familiar para essa ligação?

António Eustáquio: Eu tinha um tio meu que tocava, ele não era profissional mas tocava acordeão, guitarra,  contrabaixo, piano, etc. era um daqueles indivíduos que tinha facilidade, e segundo a minha mãe os primeiros passos que dei foi quando ele estava a tocar acordeão e eu quis agarrar o acordeão. Os instrumentos que ele tinha lá na casa da minha bisavó, ninguém me deixava chegar perto para não estragar, até que um dia as apanhei distraídas, devia ter uns seis anos, peguei numa guitarra e comecei a tocar um fado de Coimbra, isto é, a melodia. Quando o meu pai lá chegou e me ouviu a tocar disse imediatamente: Tens de aprender música! Foi assim que comecei a ter aulas na FNAT, a Federação Nacional para a Alegria no Trabalho com o Senhor Portalete, uma coisa do Estado Novo. Eu disse que queria aprender piano e ele disse: mostra lá as tuas mãozinhas, e eu mostrei e ele respondeu,  não não, tu vais aprender acordeão

Só mais tarde, por volta dos meus treze anos é que comecei a tocar guitarra, oferecida pela minha mãe, naquela onda da música pop. Quando fui para o liceu formei uma banda que era o Andromeda e tocámos em festas de finalistas e um pouco por todo o lado, sendo que acabámos por ir todos para o Conservatório de Castelo Branco, embora nem todos viéssemos a seguir a carreira da música.

Carlos Bernardo: Encontrou em Castelo de Vide alguma tradição musical? 

António Eustáquio: Castelo de Vide chegou a ter duas Filarmónicas e uma companhia de teatro de renome internacional, e teve ainda outra coisa engraçada, a Farmácia Republicana e a Monárquica, ou seja, a banda republicana e a monárquica, e quando chegavam ali ao meio da rua a tocar, havia pancadaria que nunca mais acabava. Era curioso porque uma delas, já não sei precisar qual, tinha poucos elementos, então ficou célebre uma frase que eles diziam que era, alarguem-se rapazes para parecerem mais (risos). Esse fenómeno cultural em Castelo de Vide era curioso porque havia sempre essa disputa entre quem tocava melhor.

Outra personagem emblemática aqui da vila é o famoso Chinês, o barbeiro com quem tenho várias histórias caricatas, e que foi assim apelidado por se ter vestido de chinês no Carnaval. Uma delas estava eu no estabelecimento dele e andava eu na altura a estudar guitarra clássica com o método do famoso guitarrista espanhol Emilio Pejo, quando o Chinês me pergunta o que é que eu faço, e me responde imediatamente: Mas eu conheço o Emilio Pujol! Ou seja, basicamente o Emilio Pujol estava na altura em Castelo de Vide com uma peça de teatro, e já tinha passado por ali. A outra história foi quando conheci o José Manuel Rodrigues, um grande fotógrafo e quando lhe disse que era de Castelo de Vide, a primeira coisa que me disse foi: Eu vou lá sempre cortar o cabelo ao Chinês! Veja lá, o homem estava na Holanda na altura e quando precisava, apanhava um avião e vinha a Castelo de Vide cortar o cabelo!

Carlos Bernardo: Voltando atrás, quando é que vem definitivamente para Castelo de Vide?

António Eustáquio: Eu tive uma sorte bestial e foi uma coisa definidora para a minha vida ter trabalho em Paris em 1979/80 com indivíduos que na altura estavam a trabalhar naquilo que se viria a chamar de World Music, Músicas do Mundo e de poder tocar com eles. Até pensei em lá ficar mas depois fui chamado para a tropa e tive de me vir embora. Mas isto a propósito, entretanto fui trabalhar para a Orquestra em Lisboa, e fomos a primeira orquestra privada a trabalhar para a RTP. Fui viver para Lisboa, aliás comprei uma casa lá em Carcavelos, na altura já estava casado, só que de repente a minha mulher ficou grávida e eu pensei assim, eu não quero viver neste mundo de stress e começou-me a doer o peito, tinha 20 e poucos anos… E foi aí uma das decisões mais importantes da minha vida. Ao vir para Castelo de Vide encontrei não só a paz, como o meu caminho.

Pelo meio ainda trabalhei enquanto músico de telefone, porque na altura contratava-se mesmo músicos, hoje em dia é que já se faz tudo no computador, e aprendi a tocar vários instrumentos assim, como a guitarra, o bandolim, a guitarra portuguesa, enfim, instrumentos de corda. Entretanto quis fazer o meu percurso pessoal e a partir daí comecei a dedicar-me à guitarra portuguesa, isto também porque tive um contacto próximo com o Carlos Paredes. Isto tudo para dizer que Castelo de Vide realizou-me mais como músico e deu-me a possibilidade de ter um percurso mais puro e mais tranquilo para poder compor. Eu estive no Canadá, fiz lá dois concertos e depois fiquei lá uns tempos e comprei lá uma série de discos e depois pensei, porque não gravar um quarteto de cordas com guitarra portuguesa? Depois, quando cheguei cá, telefonei à malta da Gulbenkian e gravámos um CD e esse projeto veio a chamar-se Sons do Tempo, isto no final dos anos 80, início dos anos 90. E pronto, depois comecei a dar aulas aqui, porque viver da música é complicado.

Carlos Bernardo: Como é que vê a atividade cultural em Castelo de Vide hoje em dia, particularmente na música?

António Eustáquio: Nos concertos que faço em Castelo de Vide temos sempre casa cheia, aliás tinha agora dois concertos, um deles até íamos fazer numa igreja aqui em ruínas que se chamava Concerto para a Paz, que era um reportório de música árabe sefardita, era um mistura de religiões num só concerto e inclusive convidámos as entidades de cada religião para estar presentes, como uma forma de união, não poderá acontecer este ano, mas para o próximo certamente.

Eu estive a tocar num festival na Córsega que era de música mediterrânea em que nós tocávamos no festival mas também tínhamos de ir tocar a uma escola no dia antes para sensibilizá-los – aos pais e aos filhos – para irem depois ver o concerto e podiam inclusive fazer perguntas, e eu acredito que é aí que se adquire público. Da mesma forma que acredito numa programação cultural que aposte sempre numa linha de continuidade e não numa cultura avulso.

Carlos Bernardo: Como é que o famoso guitolão apareceu na sua vida?

António Eustáquio: Um dia estava em casa do Carlos Paredes, um apartamento pequenino com guitarras por todo o lado, e estava lá uma guitarra portuguesa mas com uma caixa maior, e a Luísa, esposa dele, disse-me para a experimentar. Basicamente isto foi um instrumento que o Paredes mandou fazer ao Grácio, o construtor, em 1972. O Paredes queria uma guitarra que pudesse substituir a viola, isto é, ele queria as duas num só instrumento. Então o Grácio fez-lhe o instrumento que era uma caixa da guitarra de Coimbra com um braço mais longo, e aí nasce uma coisa a que o Paredes chamou de citolão. Entretanto o Grácio ficou sempre com aquela ideia de fazer um modelo definitivo e até tinha lá madeiras guardadas há mais 30 anos que tinha ido buscar a Valência (…) quando o Carlos Paredes faleceu, eu fui tocar com esse trio de cordas ao funeral na Basílica da Estrela e estava cá fora, em conversa com o Grácio, quando lhe disse que o melhor que podíamos fazer em homenagem ao Paredes era construir o guitolão, e assim foi. Só existem 3, um no Algarve, outro em Coimbra e o meu.

 

As horas passaram numa conversa tão fluída e tão serena, que se tornou por demais evidente a tal tranquilidade que o António viria a encontrar aqui. Numa harmonia entre o passado, o presente, mas também o futuro, porque a vontade de criar continua acesa, a única mudança é mesmo a quebra no ritmo, adaptado agora a um novo compasso, delicado mas convicto, a condizer com a essência deste lugar. 

Julho 2020

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